Ele olhou na direção da casa mas não conseguia ver nada. Se eles descessem pela passagem, o veriam correndo em meio às árvores com o menino. Este
é
o momento. Ele caiu no chão e puxou o menino para si. Shh, ele disse. Shh.
Eles vão matar a gente? Papai?
Shh.
Eles ficaram deitados nas folhas e nas cinzas com o coração aos pulos. Ele ia começar a tossir. Teria que pôr a mão sobre a boca mas o menino a estava segurando e não soltava e com a outra mão ele segurava o revólver. Tinha que se concentrar para abafar a tosse e ao mesmo tempo tentava escutar. Ele girou o queixo em meio às folhas, tentando ver. Fique com a cabeça abaixada, ele sussurrou.
Eles estão vindo?
Não.
Rastejaram devagar por entre as folhas na direção do que parecia ser um terreno mais baixo. Ele ficou deitado escutando, abraçado ao menino. Podia ouvi-los na estrada falando. Voz de uma mulher. Depois ouviu-os nas folhas secas. Pegou a mão do menino e colocou o revólver nela. Pegue, ele sussurrou. Pegue. O menino estava aterrorizado. Colocou o braço em torno dele e o abraçou. O corpo tão magro. Não tenha medo, ele disse. Se eles te acharem você vai ter que fazer isto. Está entendendo? Shh. Não chore. Está me ouvindo? Você sabe como fazer. Coloca dentro da boca e aponta para cima. Faça rápido e com força. Está entendendo? Pare de chorar. Está entendendo?
Acho que sim.
Não. Está entendendo?
Estou.
Diga estou entendendo Papai.
Estou entendendo Papai.
Baixou os olhos para ele. Tudo o que viu foi terror. Tirou a arma dele. Não está não, ele disse.
Eu não sei o que fazer, Papai. Eu não sei o que fazer. Onde é que você vai estar?
Está tudo bem.
Eu não sei o que fazer.
Shh. Eu estou bem aqui. Não vou te deixar. Promete.
Sim. Prometo. Eu ia correr. Tentar atraí-los para longe. Mas não posso te deixar.
Papai?
Shh. Fique abaixado.
Estou com tanto medo.
Shh.
Ficaram deitados escutando. Você consegue fazer isto? Quando o momento chegar? Quando o momento chegar não vai haver tempo. O momento é agora. Amaldiçoe Deus e morra. E se não disparar? Você poderia esmagar esse crânio adorado com uma pedra? Há um ser dentro de você sobre o qual você não sabe nada? Será possível? Segure-o nos braços. Assim mesmo. A alma é rápida. Puxe-o na sua direção. Beije-o. Rápido.
Ele esperou. O pequeno revólver niquelado em sua mão. Ia tossir. Concentrou a mente toda no esforço de reter a tosse. Tentava escutar mas não conseguia ouvir nada. Não vou te deixar, ele sussurrou. Não vou te deixar nunca. Está entendendo? Ficou deitado nas folhas abraçado ao menino trêmulo. Segurando com força o revólver. Durante todo o longo crepúsculo e pela escuridão adentro.
Fria e sem estrelas. Abençoada. Começou a acreditar que tinham uma chance. Só temos que esperar, ele sussurrou. Tanto frio. Ele tentava pensar mas sua mente rodava. Ele estava tão fraco. Toda essa conversa sobre correr. Ele não podia correr. Quando estava realmente escuro ele desatou as tiras da mochila e puxou os cobertores e estendeu-os sobre o menino e logo o menino estava adormecido.
Durante a noite ele ouviu gritos medonhos vindo da casa e tentou cobrir as orelhas do menino e depois de algum tempo os gritos pararam. Ficou deitado escutando. Quando tinha passado através da moita de bambu na direção da estrada ele tinha visto uma caixa. Algo como uma casinha de crianças. Deu-se conta de que era ali que ficavam observando a estrada. Deitados aguardando e tocando o sino na casa para que seus companheiros viessem. Cochilou e acordou. O que está vindo? Passos nas folhas. Não. Apenas o vento. Nada. Ele se sentou e olhou na direção da casa mas só o que conseguia ver era escuridão. Sacudiu o menino para acordá-lo. Vamos, ele disse. Temos que ir. O menino não respondeu, mas sabia que ele estava acordado. Ele puxou os cobertores e prendeu-os com as correias à mochila. Venha, sussurrou.
Eles se puseram a caminho através da floresta escura. Havia uma lua em algum lugar para além das nuvens cinzentas e só conseguiam divisar as árvores. Cambaleavam como bêbados. Se eles encontrarem a gente vão nos matar, não vão Papai.
Shh. Chega de conversa.
Não vão Papai.
Shh. Sim. Vão sim.
Ele não tinha ideia da direção que poderiam ter tomado e seu medo era o de que pudessem andar em círculo e voltar para a casa. Tentou se lembrar se sabia de alguma coisa sobre aquilo ou se era apenas uma fábula. Em que direção os homens perdidos se desviavam? Talvez mudasse com os hemisférios. Ou com serem destros ou canhotos. Por fim tirou aquilo da cabeça. A noção de que podia haver algo por que se corrigir. Sua mente o estava traindo. Fantasmas que não se ouviam fazia mil anos erguendo-se devagar do sono. Corrija-se por isso. Os passos do menino vacilavam. Pediu para ser carregado, tropeçando e falando de modo quase ininteligível, e o homem o carregou e ele adormeceu em seu ombro instantaneamente. Ele sabia que não aguentaria por muito tempo.
Acordou na escuridão da floresta sobre as folhas tremendo violentamente. Sentou-se e tateou ao redor em busca do menino. Pôs a mão sobre as costelas magras. Calor e movimento. Coração batendo.
Quando acordou novamente havia quase luz suficiente para enxergar. Jogou para trás o cobertor e se pôs de pé e quase caiu. Endireitou-se e tentou ver ao seu redor na floresta cinzenta. Quanto tinham avançado? Andou até o alto de uma elevação e se agachou e observou o dia nascer. A aurora avarenta, o mundo frio e ilúcido. Na distância o que parecia ser uma floresta de pinheiros, crua e preta. Um mundo sem cor feito de arame e crepe. Voltou, pegou o menino e fez com que ele se sentasse. Sua cabeça não parava de cair para a frente. Temos que ir, ele disse. Temos que ir.
Carregou-o através do campo, parando para descansar a cada cinquenta passos contados. Quando chegou aos pinheiros ajoelhou-se e o colocou sobre o chão arenoso de folhas mortas e cobriu-o com os cobertores e ficou sentado observando-o. Parecia saído de um campo de extermínio. Faminto, exausto, doente de medo. Inclinou-se, beijou-o, se levantou e caminhou até a borda da floresta e depois caminhou pelo perímetro ao redor para ver se estavam a salvo.
Do outro lado do campo rumo ao sul podia ver o vulto de uma casa e um celeiro. Para além das árvores a curva de uma estrada. Um longo caminho com grama morta. Hera morta sobre um muro de pedra e uma caixa de correio e uma cerca ao longo da estrada e as árvores mortas depois. Tudo frio e silencioso. Envolvidos pela mortalha da névoa de carbono. Ele caminhou de volta e se sentou ao lado do menino. Tinha sido o desespero que o levara a tamanho descuido e ele sabia que não podia fazer aquilo de novo. Não importava o quê.
O menino dormia havia horas. Imóvel como se estivesse petrificado de medo. Tinha acontecido antes. Ele pensou em acordá-lo mas sabia que ele não se lembraria de nada se fizesse isso. Ele o havia treinado a se entocar na floresta como um filhote de corça. Por quanto tempo? No fim tirou o revólver do cinto e deixou-o do lado dele sob os cobertores e se levantou e se pôs a caminho.
Chegou ao celeiro vindo pelo morro acima dele, parando para observar e para escutar. Abriu caminho entre as ruínas de um velho pomar de maçãs, tocos pretos e nodosos, a grama morta na altura de seus joelhos. Ficou parado na
entrada do celeiro escutando. Tirinhas de luz pálida. Caminhou pelas baias empoeiradas. Ficou parado no centro do celeiro escutando mas não havia nada. Subiu a escada para o sótão e estava tão fraco que não tinha certeza de conseguir chegar até o alto. Foi até o final do sótão e olhou pela alta janela com empena para a região lá embaixo, a terra loteada morta e cinzenta, a cerca, a estrada.