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Eu sei.

Se você fica de vigia o tempo todo isso não significa que está o tempo todo com medo?

Bem. Acho que você precisa estar com medo suficiente para ficar de vigia, em primeiro lugar. Para ser cuidadoso. Vigilante.

Mas no resto do tempo não fica assustado?

No resto do tempo.

Sim.

Não sei. Talvez a gente devesse ficar sempre de vigia. Se aparece algum problema quando você menos espera talvez a coisa certa a fazer seja sempre esperar.

Você sempre espera? Papai?

Espero. Mas às vezes eu posso esquecer que estou de vigia.

Ele sentou o menino no baú sob o lampião e com uma escova de plástico e um par de tesouras se pôs a cortar seu cabelo. Tentou fazer direito e levou algum tempo. Quando terminou tirou a toalha de cima dos ombros e pegou o cabelo dourado do chão e limpou o rosto e os ombros do menino com um pano úmido e segurou um espelho para que ele visse.

Você fez um bom trabalho, Papai.

Bom.

Eu pareço mesmo magrelo.

Você está mesmo magrelo.

Ele cortou seu próprio cabelo mas não ficou tão bom. Aparou a barba com a tesoura enquanto uma panela de água esquentava e depois se barbeou com um barbeador de plástico. O menino observava. Quando ele terminou olhou-se no espelho. Parecia não ter queixo. Virou-se para o menino. Como é que eu estou? O menino esticou o pescoço. Não sei, ele disse. Você vai ficar com frio?

Comeram uma refeição suntuosa à luz de velas. Presunto e feijão verde e purê de batatas com biscoitos e molho. Ele tinha encontrado quatro garrafas de 250ml de uísque puro malte ainda nas bolsas de papel em que tinham sido comprados e bebeu um pouco num copo com água. Deixou-o tonto antes mesmo de terminar e ele não bebeu mais. Comeram pêssegos e creme sobre os biscoitos para a sobremesa e beberam café. Os pratos de papel e os talheres de plástico ele jogou numa sacola de lixo. Jogaram xadrez e depois ele pôs o menino na cama.

Durante a noite foi acordado pelo ruído abafado da chuva caindo sobre o colchão na porta acima deles. Pensou que devia estar chovendo realmente forte para que ele conseguisse ouvir. Levantou-se com a lanterna e subiu a escada e ergueu a porta e iluminou o quintal com a luz. O quintal já estava inundado e a chuva martelava. Fechou a porta. Havia vazado água que gotejava escada abaixo mas ele achava que o abrigo em si era bastante à prova d’água. Foi ver como estava o menino. Estava úmido de suor e o homem puxou para baixo um dos cobertores e abanou seu rosto e depois diminuiu o aquecedor e voltou para a cama.

Quando acordou novamente achou que a chuva tinha parado. Mas não foi isso que o acordou. Ele tinha sido visitado num sonho por criaturas de um tipo que nunca tinha visto antes. Não falavam. Ele achou que tinham estado agachadas ao lado do seu catre enquanto dormia e que tinham escapulido quando ele acordou. Virou-se e olhou para o menino. Talvez compreendesse pela primeira vez que, para o menino, ele próprio era um alienígena. Um ser de um planeta que já não existia. Cujas histórias eram suspeitas. Ele não tinha como construir para o prazer da criança o mundo que tinha perdido sem construir também a perda e achava que talvez o menino soubesse disso melhor do que ele. Tentou se lembrar do sonho mas não conseguiu. Tudo o que restava era a sensação. Pensou que talvez eles tivessem vindo avisá-lo. De quê? De que ele não podia acender no coração da criança o que eram cinzas no seu próprio. Mesmo agora alguma parte dele desejava que nunca tivessem encontrado aquele refúgio. Alguma parte dele desejava que tudo tivesse terminado.

Verificou que a válvula do tanque estivesse fechada e puxou o fogãozinho ao redor do baú e se sentou e se pôs a desmontá-lo. Desparafusou o painel superior e removeu o conjunto dos queimadores e desconectou os dois queimadores com uma pequena chave inglesa. Derramou as peças de dentro de um recipiente de plástico e escolheu um parafuso para enfiar na junção e depois apertou-o. Conectou a mangueira do tanque e segurou o queimadorzinho de esquentar comida semipronta na mão, pequeno e leve. Colocou-o sobre o baú, levou a chapa de metal, jogou-a no lixo e foi até a escada para verificar o tempo. O colchão no alto do alçapão tinha absorvido um bocado d’água e a porta estava difícil de levantar. Ficou de pé com ela apoiada nos ombros e olhou para o dia lá fora. Um leve chuvisco caindo. Impossível dizer para que hora do dia estava olhando. Observou a casa e as terras ensopadas lá fora e depois abaixou a porta e desceu a escada e se pôs a preparar o café-da-manhã.

Passaram o dia comendo e dormindo. Ele tinha planejado ir embora mas a chuva era justificativa suficiente para ficar. O carrinho de compras estava no depósito. Improvável que alguém viajasse pela estrada hoje. Eles examinaram o que havia no estoque e separaram o que podiam levar, arrumando tudo num cubo medido no canto do abrigo. O dia foi breve, mal chegou a ser um dia. Quando escureceu a chuva tinha parado e eles abriram o alçapão e começaram a carregar caixas e pacotes e sacos de plástico pelo quintal até o depósito e colocar no carrinho. O caminho mal iluminado que ia dar no alçapão se estendia no escuro do quintal como um túmulo de boca aberta no dia do juízo final em alguma velha pintura apocalíptica. Quando o carrinho estava totalmente carregado, ele amarrou uma lona por cima e apertou os prendedores no arame com cordões elásticos curtos e recuaram e olharam para o resultado à luz da lanterna. Ele pensou que devia ter apanhado uns dois jogos extra de rodinhas dos outros carrinhos no depósito mas agora era tarde demais. Também devia ter guardado o espelho retrovisor de motocicleta de seu antigo carrinho. Jantaram e dormiram até de manhã e então tomaram banho de novo com esponjas e lavaram o cabelo em bacias de água morna. Tomaram o café-da-manhã e com a primeira luz do dia estavam na estrada, usando máscaras novas cortadas dos lençóis, o menino indo na frente com uma vassoura e varrendo galhos e ramos do caminho e o homem inclinado sobre o carrinho observando a estrada que se estendia diante deles.

O carrinho estava pesado demais para empurrar na floresta molhada e pararam para descansar ao meio-dia no meio da estrada e prepararam chá quente e comeram o resto do presunto enlatado com biscoitos salgados e com mostarda e molho de maçã. Sentados com as costas de um apoiadas nas do outro e observando a estrada. Você sabe onde a gente está Papai? o menino disse.

Mais ou menos.

Como mais ou menos?

Bem. Acho que estamos a cerca de trezentos quilômetros da costa. Como voa o corvo.

Como voa o corvo?

Sim. Quer dizer em linha reta.

Vamos chegar lá em breve?

Não muito em breve. Mais ou menos em breve. Não vamos seguir como voa o corvo.

Porque os corvos não têm que seguir estradas? Sim.

Eles podem ir aonde quiserem.

Sim.

Você acha que ainda há corvos em algum lugar? Não sei.

Mas o que você acha?

Acho que é improvável.

Eles poderiam voar para Marte ou algum lugar? Não. Não poderiam.

Porque é longe demais?

Sim.

Mesmo que eles quisessem.

Mesmo que eles quisessem.

E se eles tentassem e só chegassem ao meio do caminho ou coisa assim e ficassem cansados demais. Eles iam cair de volta aqui?

Bem. Eles não poderiam realmente chegar até a metade do caminho porque estariam no espaço e não há ar no espaço então eles não poderiam voar e além disso seria frio demais e iam morrer congelados.

Oh.

De todo modo eles não saberiam onde Marte fica.

A gente sabe onde Marte fica?

Mais ou menos.