O que você quer dar para ele?
O que você acha que ele devia comer?
Não acho que ele devia comer nada. O que você quer dar para ele?
Podíamos cozinhar alguma coisa no fogão. Ele podia comer com a gente.
Você está falando em parar. Para a noite.
É.
Ele abaixou os olhos para o velho e olhou para a estrada. Tudo bem, ele disse. Mas amanhã seguimos em frente.
O menino não respondeu.
Isso é o melhor que você vai conseguir.
Tudo bem.
Tudo bem significa tudo bem. Não significa que vamos negociar outra vez amanhã.
O que é negociar?
Significa conversar mais a respeito e aparecer com um outro acordo. Não há nenhum outro acordo. Isso é tudo.
Está bem.
Está bem.
Ajudou o velho a ficar de pé e entregou-lhe a bengala. Ele não chegava a pesar 45 quilos. Ficou olhando ao redor de modo inseguro. O homem pegou a lata das mãos dele e jogou na floresta. O velho tentou entregar-lhe a bengala mas ele a empurrou. Quando você comeu pela última vez? ele perguntou.
Não sei.
Você não se lembra.
Acabei de comer.
Quer comer conosco?
Não sei.
Não sabe?
Comer o quê?
Talvez um ensopado de carne. Com biscoitos salgados. E café.
O que eu tenho que fazer?
Dizer-nos para onde foi o mundo.
O quê?
Você não tem que fazer nada. Consegue andar direito?
Consigo andar.
Ele abaixou os olhos para o menino. Você é um menino? ele disse.
O menino olhou para o pai.
O que ele parece ser? o pai dele disse.
Não sei. Não enxergo bem.
Consegue me enxergar?
Consigo dizer que tem alguém aí.
Bom. Precisamos ir andando. Ele abaixou os olhos para o menino. Não segure a mão dele, disse.
Ele não enxerga.
Não segure a mão dele. Vamos.
Para onde vamos? o velho disse.
Vamos comer.
Ele fez que sim e estendeu a bengala e tateou com hesitação a estrada.
Quantos anos você tem?
Noventa.
Não tem não.
Está bem.
E isso o que você diz às pessoas?
Que pessoas?
Qualquer pessoa.
Acho que sim.
Para que não te machuquem?
Sim.
Funciona?
Não.
O que tem na sua mochila?
Nada. Você pode olhar.
Sei que posso olhar. O que tem aí?
Nada. Só umas coisas.
Nada para comer.
Não.
Qual é o seu nome?
Ely.
Ely de quê?
O que há de errado om Ely?
Nada. Vamos.
Acamparam na floresta bem mais perto da estrada do que ele teria gostado. Teve que arrastar o carrinho enquanto o menino conduzia por trás e fizeram uma fogueira para que o velho se aquecesse embora ele também não gostasse muito disso. Comeram e o velho ficou sentado embrulhado em sua colcha solitária e segurava a colher como uma criança. Só tinham duas xícaras e ele bebeu seu café na tigela onde tinha comido, os polegares recurvados sobre a borda. Sentado como um buda faminto e surrado, olhando fixamente para os carvões.
Você não pode ir conosco, você sabe, o homem disse.
Ele fez que sim.
Há quanto tempo você está na estrada?
Sempre estive na estrada. Você não pode ficar num lugar só.
Como você vive?
Eu apenas sigo em frente. Eu sabia que isto ia acontecer.
Sabia que isto ia acontecer?
Sim. Isto ou algo do tipo. Sempre acreditei nisso.
Tentou se preparar para isto?
Não. O que você faria?
Não sei.
As pessoas estavam sempre se preparando para o amanhã. Eu não acreditava nisso. O amanhã não estava se preparando para elas. Nem sabia que elas estavam ali.
Acho que não.
Mesmo que você soubesse o que fazer não saberia o que fazer. Você não saberia se queria fazer ou não. Suponha que você fosse o último? Suponha que você fizesse isso a você mesmo?
Você gostaria de morrer?
Não. Mas talvez eu gostasse de ter morrido. Quando você está vivo sempre tem isso à sua frente.
Ou você talvez gostasse de nunca ter nascido.
Bem. Mendigos não podem escolher.
Você acha que isso seria pedir demais.
O que está feito está feito. De todo modo, é uma bobagem pedir luxos em tempos como estes.
Acho que sim.
Ninguém quer estar aqui e ninguém quer ir embora. Ele levantou a cabeça e olhou para o menino do outro lado da fogueira. O homem podia ver seus olhinhos observando-o à luz da fogueira. Sabe Deus o que aqueles olhos viam. Ele se levantou para empilhar mais madeira na fogueira e puxou os carvões de cima das folhas mortas. As centelhas vermelhas levantaram-se num estremecimento e morreram no negrume lá em cima. O velho bebeu o que restava do café e colocou a tigela à sua frente e se inclinou na direção do calor com as mãos estendidas. O homem o observava. Como você saberia se fosse o último homem na terra? ele disse.
Acho que você não saberia. Simplesmente seria.
Ninguém saberia.
Não faria diferença alguma. Quando você morre é como se o resto do mundo morresse também.
Acho que Deus saberia. E isso?
Deus não existe.
Não?
Deus não existe e nós somos seus profetas.
Não entendo como você ainda está vivo. Como você come?
Não sei.
Não sabe?
As pessoas te dão coisas.
As pessoas te dão coisas.
Sim.
Para comer.
Para comer. Sim.
Não dão não.
Você deu.
Não dei não. O menino deu.
Há outras pessoas na estrada. Vocês não são os únicos.
Você é o único?
O velho olhou de perto cautelosamente. O que você quer dizer? ele disse.
Tem gente com você?
Que gente?
Qualquer um.
Não tem ninguém. Sobre o que você está falando? Estou falando sobre você. Sobre em que tipo de trabalho você poderia estar.
O velho não respondeu.
Imagino que você queira ir conosco.
Ir com vocês.
Sim.
Você não vai me levar com vocês.
Você não quer ir.
Eu não teria nem vindo até aqui mas estava com fome.
As pessoas que te deram comida. Onde eles estão? Não tem ninguém. Eu simplesmente inventei isso. O que mais você inventou?
Só estou na estrada assim como vocês. Nenhuma diferença.
Seu nome é mesmo Ely?
Não.
Você não quer dizer seu nome.
Não quero dizer.
Por quê?
Não poderia confiá-lo a você. Para fazer alguma coisa com ele. Não quero ninguém falando de mim. Dizendo onde é que eu estava ou o que eu disse quando estava lá. Quero dizer, você talvez pudesse falar de mim. Mas ninguém poderia dizer que era eu. Eu poderia ser qualquer pessoa. Acho que em tempos como estes quanto menos se disser melhor. Se alguma coisa tivesse acontecido e nós fôssemos sobreviventes e nos encontrássemos na estrada então teríamos algo sobre o que falar. Mas não somos. Então não temos.