Talvez não.
Mas você não quer dizer isso na frente do menino.
Você não é uma isca servindo a um bando de ladrões da estrada?
Eu não sou nada. Posso ir embora se você quiser. Consigo encontrar a estrada.
Você não precisa ir embora.
Eu não vejo uma fogueira há muito tempo, isso é tudo. Vivo como um animal. Você não ia querer saber as coisas que comi. Quando vi esse menino pensei que tinha morrido.
Pensou que ele era um anjo?
Eu não sabia o que ele era. Nunca achei que fosse voltar a ver uma criança. Não sabia que isso ia acontecer.
E se eu disser que ele é um deus?
O velho sacudiu a cabeça. Já deixei tudo isso para trás. Faz anos. Onde os homens não podem viver deuses também não se sentem bem. Você vai ver. É melhor ficar sozinho. Então espero que não seja verdade o que você disse pois estar na estrada com o último deus seria uma coisa terrível então espero que não seja verdade. As coisas vão melhorar quando todos tiverem morrido.
Vão?
Claro que vão.
Melhorar para quem?
Todo mundo.
Todo mundo.
Claro. Todos nós estaremos melhor. Vamos respirar com mais facilidade.
E bom saber disso.
E sim. Quando todos tivermos morrido pelo menos não haverá ninguém aqui além da morte e seus dias estarão contados também. Ela vai estar aqui na estrada sem nada para fazer e sem ninguém a quem fazer. Ela vai dizer: Para onde foi todo mundo? E é assim que vai ser. O que há de errado com isso?
Pela manhã estavam parados na estrada e ele e o menino discutiam sobre o que dar ao velho. No fim ele não recebeu muita coisa. Algumas latas de vegetais e frutas. Por fim o menino simplesmente foi até a beira da estrada e se sentou nas cinzas. O velho arrumou as latas na mochila e amarrou as tiras. Você devia agradecer a ele, sabe, o homem disse. Eu não teria dado nada a você.
Talvez eu devesse e talvez não devesse.
Por que não?
Eu não teria dado a ele do meu.
Você não se preocupa se isso pode magoá-lo?
Vai magoá-lo?
Não. Não foi por esse motivo que ele fez isso.
Por que ele fez?
Ele olhou para o menino lá adiante e olhou para o velho. Você não entenderia, ele disse. Não tenho certeza de que eu entenda.
Talvez ele acredite em Deus.
Não sei no que ele acredita.
Ele vai superar.
Não vai não.
O velho não respondeu. Olhou para o dia ao seu redor.
Você também não vai nos desejar boa sorte, vai?
Não sei o que seria isso. Que sorte vocês gostariam de ter. Quem poderia saber uma coisa dessas?
Então todos seguiram em frente. Quando ele olhou para trás o velho tinha partido com a bengala, tateando seu caminho, diminuindo lentamente na estrada atrás deles como algum mascate de um livro de histórias de outrora, escuro e curvado e magro como uma aranha e prestes a desaparecer para sempre. O menino não chegou a olhar para trás.
No começo da tarde eles estenderam a lona na estrada e se sentaram e comeram um almoço frio. O homem o observava. Você vai falar? ele disse.
Vou.
Mas você não está feliz.
Estou bem.
Quando nossa comida acabar você vai ter mais tempo para pensar sobre isso.
O menino não respondeu. Comeram. Ele olhou para a estrada atrás deles. Depois de algum tempo disse: Eu sei. Mas não vou me lembrar disso como você se lembra.
Provavelmente não.
Eu não disse que você estava errado.
Mesmo que tenha pensado isso.
Está tudo bem.
E, o homem disse. Bem. Não há muitas boas novidades na estrada. Em tempos como estes.
Você não devia debochar dele.
Está bem.
Ele vai morrer.
Eu sei.
A gente pode ir agora?
Sim, o homem disse. Podemos ir.
À noite ele acordou na fria escuridão tossindo e tossiu até o peito ficar em carne viva. Inclinou-se na direção da fogueira e soprou os carvões e colocou mais madeira e se levantou e se afastou do acampamento até onde a luz lhe permitia. Ajoelhou-se nas folhas secas e nas cinzas com o cobertor por cima dos ombros e depois de algum tempo a tosse começou a passar. Pensou no velho em algum lugar lá fora. Olhou novamente para o acampamento através da paliçada negra das árvores. Esperava que o menino tivesse voltado a dormir. Ficou ajoelhado ali respirando com dificuldade e baixinho, as mãos sobre os joelhos.
Vou morre
r, ele falou. Diga-me como eu faço isso.
No dia seguinte andaram até quase escurecer. Ele não conseguiu encontrar nenhum lugar seguro para fazer uma fogueira. Quando tirou o tanque do carrinho achou que parecia leve. Sentou-se e girou a válvula, mas já estava ligada. Ele girou o botãozinho da boca. Nada. Inclinou-se e ficou escutando. Tentou as duas válvulas novamente em suas combinações. O tanque estava vazio. Ele se agachou ali com as mãos em punho contra a testa, os olhos fechados. Depois de algum tempo levantou a cabeça e ficou sentado olhando fixamente para a floresta fria que escurecia.
Comeram um jantar frio com broa de milho e feijão e carne de uma lata. O menino lhe perguntou como o tanque havia esvaziado tão cedo mas ele disse que simplesmente havia esvaziado.
Você disse que ia durar semanas.
Eu sei.
Mas só se passaram uns poucos dias.
Eu estava errado.
Comeram em silêncio. Depois de algum tempo o menino disse: Esqueci de desligar a válvula, não foi?
Não é culpa sua. Eu devia ter verificado.
O menino colocou o prato sobre a lona. Desviou o olhar.
Não é culpa sua. Você tem que desligar as duas válvulas. As roscas deveriam estar seladas com fita isolante senão vazaria e eu não fiz isso. E minha culpa. Eu não te falei.
Mas não havia fita nenhuma, havia?
Não é culpa sua.
Eles seguiram caminhando com dificuldade, magros e imundos como viciados na rua. Encapuzados em seus cobertores sob o frio e sua respiração fumegando, misturada à neve preta e sedosa. Estavam atravessando a ampla planície costeira onde os ventos seculares os impeliam em nuvens uivantes de cinzas a encontrar abrigo onde pudessem. Casas ou celeiros ou sob a encosta de uma vala de beira de estrada com os cobertores puxados por sobre as cabeças e o céu do meio-dia preto como os porões do inferno. Segurou o menino de encontro a si, frio até os ossos. Não desanime, ele disse. Vamos ficar bem.
A terra era cheia de sulcos e erodida e árida. Os ossos de criaturas mortas estendidos nos brejos. Monturos de lixo anônimo. Casas de fazenda nos campos despidas de sua pintura e os sarrafos arrancados dos caibros das paredes. Tudo sem sombras e sem traços. A estrada descia através de uma selva de puerária morta. Um pântano onde os juncos mortos jaziam sobre a água. Para além da beira dos campos a névoa opaca se estendia igualmente sobre a terra e o céu. No fim da tarde tinha começado a nevar e eles seguiram com a lona sobre as cabeças e a neve molhada sibilando no plástico.