Isso é verdade?
Sim. E verdade.
Mas poderia não ser verdade.
Acho que é verdade.
Está bem.
Você não acredita em mim.
Acredito em você.
Está bem.
Sempre acredito em você.
Eu acho que não.
Acredito sim. Tenho que acreditar.
Eles caminharam de volta à estrada através da lama. Cheiro de terra e cinza molhada sob a chuva. Agua preta no fosso da beira da estrada. Caindo de um cano de esgoto dentro de um poço. Num quintal um cervo de plástico. Tarde no dia seguinte entraram numa cidadezinha onde três homens saíram de trás de um caminhão e pararam na estrada diante deles. Emaciados, vestindo trapos. Segurando pedaços de cano. O que vocês têm no carrinho? Ele apontou o revólver para eles. Eles continuavam parados. O menino se agarrou ao seu casaco. Ninguém falava. Ele empurrou o carrinho para a frente outra vez e eles se afastaram até a beira da estrada. Ele mandou o menino empurrar o carrinho e caminhou de costas mantendo o revólver apontado para eles. Tentava parecer um matador migratório como qualquer outro mas seu coração estava aos pulos e sabia que ia começar a tossir. Eles voltaram devagar para a estrada e ficaram observando. Ele colocou o revólver no cinto e virou e pegou o carrinho. No alto da ladeira quando olhou para trás eles ainda estavam de pé ali. Ele disse ao menino para empurrar o carrinho e saiu para um quintal onde podia enxergar a estrada lá atrás mas agora eles tinham desaparecido. O menino estava muito assustado. Colocou a arma por cima da lona, pegou o carrinho e seguiram em frente.
Ficaram num campo até escurecer observando a estrada mas ninguém veio. Estava muito frio. Quando estava escuro demais para enxergar, pegaram o carrinho, voltaram aos tropeços para a estrada e ele pegou os cobertores, se embrulharam neles e seguiram em frente. Tateando o pavimento sob seus pés. Uma das rodas do carrinho tinha adquirido um guincho periódico mas não havia nada a fazer a respeito. Passaram por um esforço enorme durante algumas horas e então atravessaram aos tropeços o mato da beira da estrada e se deitaram tremendo e exaustos no chão frio e dormiram até de manhã. Quando ele acordou estava doente.
Estava com febre e ficaram na floresta como fugitivos. Nenhum lugar onde fazer uma fogueira. Nenhum lugar seguro. O menino ficava sentado nas folhas observando-o. As lágrimas transbordando de seus olhos. Você vai morrer, Papai?
Não. Só estou doente.
Estou com muito medo.
Eu sei. Está tudo bem. Vou melhorar. Você vai ver.
Seus sonhos se tornavam mais nítidos. O mundo desaparecido retornava. Parentes mortos havia muito ressurgiam e lançavam olhares oblíquos sobre ele. Ninguém falava. Pensou em sua vida. Tanto tempo atrás. Um dia cinzento numa cidade estrangeira onde ele ficava de pé diante de uma janela e observava a rua lá embaixo. Atrás dele numa mesa de madeira um pequeno abajur aceso. Sobre a mesa livros e papéis. Tinha começado a chover e um gato num canto se virou e atravessou a calçada e se sentou debaixo do café bocejando. Havia uma mulher numa mesa com a cabeça nas mãos. Anos mais tarde ele se encontraria de pé nas ruínas carbonizadas de uma biblioteca onde livros enegrecidos jaziam em poças d’água. Estantes derrubadas. Alguma ira voltada às mentiras arrumadas aos milhares fileira após fileira. Pegou um dos livros e folheou as páginas pesadas e inchadas. Ele não teria pensado no valor das menores coisas estabelecido num mundo por vir. Surpreendeu-o. Que o espaço que essas coisas ocupavam era em si uma expectativa. Deixou o livro cair e deu uma última olhada ao redor e saiu abrindo caminho até a luz fria e cinzenta.
Três dias. Quatro. Ele dormia pouco. A tosse torturante o acordava. Sugando o ar com um som áspero. Me desculpe, ele dizia para a escuridão impiedosa. Está tudo bem dizia o menino.
Acendeu o pequeno lampião a óleo e deixou-o sobre uma pedra e se levantou e caminhou arrastando os pés por entre as folhas envolvido em seus cobertores. O menino sussurrou-lhe para que não fosse. Só um pouquinho, ele disse. Não vou longe. Vou te ouvir se você chamar. Se o lampião apagasse ele não conseguiria encontrar o caminho de volta. Sentou-se sobre as folhas no alto do morro e olhou para a escuridão. Nada para ver. Nenhum vento. No passado, quando caminhava assim e se sentava olhando para o campo ali adiante num vulto quase invisível onde a lua perdida trilhava a desolação cáustica, às vezes via uma luz. Fraca e indistinta na penumbra. Do outro lado de um rio ou no interior dos quadrantes enegrecidos de uma cidade queimada. Pela manhã às vezes ele regressava com o binóculo e observava os campos em busca de algum sinal de fumaça mas não via nenhum.
De pé na beira de um campo de inverno em meio a homens brutos. Da idade do menino. Um pouco mais velho. Observando enquanto eles abriam o chão rochoso da encosta com picareta e enxadão e traziam para a luz um grande bolo de serpentes somando talvez uma centena. Reunidas ali para se aquecerem umas às outras. Seus tubos foscos começando a se mover preguiçosamente sob a luz fria e dura. Como os intestinos de alguma grande besta expostos ao dia. Os homens derramaram gasolina nelas e as queimaram vivas, não tendo qualquer remédio para o mal mas apenas para a imagem dele tal como o concebiam. As serpentes queimando se contorciam horrivelmente e algumas rastejavam em chamas pelo chão da gruta iluminando seus recessos mais escuros. Como eram mudas não havia gritos de dor e os homens as observaram queimar e se contorcer e enegrecer, eles próprios no mesmo silêncio, e debandaram em silêncio no crepúsculo do inverno cada um com seus próprios pensamentos e foram para casa jantar.
Certa noite o menino acordou de um sonho e não queria dizer a ele o que era.
Você não tem que me dizer, o homem falou. Está tudo bem.
Estou com medo.
Está tudo bem.
Não está não.
E só um sonho.
Estou com muito medo.
Eu sei.
O menino virou de costas. O homem o abraçou. Escute, ele disse.
O quê.
Quando seus sonhos forem de algum mundo que nunca existiu ou de algum mundo que nunca vai existir e você ficar feliz de novo então você terá desistido. Está entendendo? E você não pode desistir. Eu não vou deixar.
Quando partiram novamente ele estava muito fraco e, apesar de todos os seus discursos, estava com mais medo do que estivera durante anos. Imundo com uma diarréia, apoiado na trave com que empurrava o carrinho de compras. Olhava para o menino do fundo de seus olhos afundados e pálidos. Alguma nova distância entre eles. Podia senti-la. No intervalo de dois dias eles chegaram a uma região onde tempestades de fogo tinham passado deixando quilômetros e quilômetros de terra queimada. Uma cobertura de cinzas sobre a estrada com centímetros de espessura e sobre a qual era difícil de passar com o carrinho. O asfalto por baixo tinha se curvado com o calor e depois endurecido novamente. Ele se inclinava sobre a barra para empurrar o carrinho e olhava para o caminho reto e comprido abaixo dele. As árvores magras lá embaixo. Os canais de um limo cinzento. Uma terra coberta de palha e enegrecida.
Depois de um cruzamento na desolação eles começaram a se deparar com os pertences de viajantes abandonados na estrada anos antes. Caixas e bolsas. Tudo derretido e preto. Velhas maletas de plástico onduladas e disformes no calor. Aqui e ali marcas de coisas arrancadas do asfalto por pessoas atrás de restos. Mais um quilômetro e pouco adiante, começaram a se deparar com os mortos. Vultos meio afundados no asfalto, agarrando-se, as bocas gritando. Ele pôs a mão no ombro do menino. Segure a minha mão, falou. Não acho que você deveria ver isto.
O que você coloca na sua cabeça é para sempre? Sim.
Está tudo bem Papai.
Está tudo bem?
Eles já estão aqui.