Esperaram. Podiam ver a fumaça através da árvores. Um vento tinha começado a açoitar o topo da espiral e a fumaça se deslocou e eles puderam sentir seu cheiro. Puderam sentir o cheiro de alguma coisa cozinhando. Vamos circundar, o homem disse.
Posso segurar sua mão?
Sim. Claro que pode.
A floresta era só troncos queimados. Não havia nada para ver. Acho que viram a gente, o homem disse. Acho que eles viram a gente e fugiram. Viram que tínhamos uma arma.
Eles deixaram a comida cozinhando.
É.
Vamos dar uma olhada.
Isso dá muito medo, Papai.
Não tem ninguém aqui. Está tudo bem.
Foram até a pequena clareira, o menino agarrado à sua mão. Tinham levado tudo consigo exceto aquela coisa preta que estava assando num espeto sobre os carvões. Ele estava ali em pé checando o perímetro quando o menino se virou e enterrou o rosto nele. Ele olhou rapidamente para ver o que tinha acontecido. O que foi? ele disse. O que foi? O menino sacudia a cabeça. Oh Papai, ele disse. Ele se virou e olhou novamente. O que o menino tinha visto era um bebê humano carbonizado sem a cabeça e estripado e escurecendo no espeto. Ele se curvou e pegou o menino e se dirigiu à estrada com ele, abraçando-o com força. Sinto muito, ele disse. Sinto muito.
Não sabia se ele voltaria a falar algum dia. Acamparam num rio e ele se sentou junto à fogueira ouvindo a água correr na escuridão. Não era um lugar seguro porque o barulho do rio mascarava todos os outros mas ele achou que ia alegrar o menino. Comeram o resto das provisões e ele se sentou estudando o mapa. Mediu a estrada com um pedaço de corda e olhou para ela e mediu outra vez. Ainda muito longe da costa. Não sabia o que iam encontrar quando chegassem lá. Ele juntou as partes do mapa, colocou-as de volta no saco plástico e ficou observando os carvões.
No dia seguinte atravessaram o rio numa ponte de ferro e chegaram a uma velha cidade industrial.
Entraram nas casas de madeira mas não encontraram nada.Um homem estava sentado numa porta usando um macacão e morto fazia anos.Parecia um homem de palha colocado ali para anunciar alguma festividade. Então seguiram ao longo do muro comprido e escuro do moinho, as janelas cobertas com tijolos. A fuligem fina e preta se precipitava na rua diante deles.
Coisas estranhas espalhadas pela beira da estrada. Dispositivos elétricos, móveis. Ferramentas. Coisas abandonadas muito tempo antes por peregrinos a caminho de suas várias e coletivas mortes. Um ano antes o menino às vezes podia pegar alguma coisa e levar consigo durante algum tempo mas já não fazia mais isso. Sentaram-se e descansaram e beberam o que restava de água limpa e deixaram a jarra de plástico na estrada. O menino disse: Se tivéssemos aquele bebezinho ele poderia vir conosco.
Sim. Poderia.
Onde eles o encontraram?
Ele não respondeu.
Será que tem outro em algum lugar?
Não sei. E possível.
Sinto muito sobre o que eu disse a respeito daquelas pessoas.
Que pessoas?
Aquelas pessoas que se queimaram. Que ficaram presas na estrada e se queimaram.
Não sabia que você tinha dito alguma coisa de
ruim.
Não foi ruim. Podemos ir agora?
Tudo bem. Você quer ir dentro do carrinho?
Está tudo bem.
Por que você não vai um pouco?
Não quero. Está tudo bem.
Água correndo devagar na região plana. Os lodaçais na beira da estrada imóveis e cinzentos. Os rios das planícies costeiras em serpentinas de chumbo atravessando a fazenda árida. Seguiram em frente. Adiante na estrada havia um declive e uma moita de bambu. Acho que há uma ponte ali. Provavelmente um riacho.
Podemos beber a água?
Não temos escolha.
Não vai deixar a gente doente.
Acho que não. Poderia estar seco.
Posso ir em frente?
Sim. Claro que pode.
O menino partiu pela estrada. Ele não o via correr fazia muito tempo. Cotovelos para fora, batendo os braços e em seus tênis grandes demais. Parou e ficou olhando, mordendo o lábio.
O riacho não passava de um pouco d’água brotando. Ele podia vê-lo se movendo levemente onde caía numa pedra de calçamento de concreto sob a estrada e cuspiu no riacho e observou-o para ver se ia se mover. Pegou um pano no carrinho e um jarro de plástico e voltou e envolveu a boca do jarro com o pano e afundou-o na água e observou-o se encher. Ergueu-o gotejando e segurou-o sob a luz. Não parecia tão ruim. Tirou o pano e entregou o jarro ao menino. Vá em frente, ele disse.
O menino bebeu e entregou-o de volta.
Beba mais um pouco.
Bebe um pouco você, Papai.
Está bem.
Eles ficaram sentados filtrando as cinzas da água e bebendo até não poderem mais. O menino deitou de costas na grama.
Temos que ir.
Estou muito cansado.
Eu sei.
Ele ficou sentado observando-o. Fazia dois dias que não comiam. Mais dois e começariam a ficar fracos. Subiu a encosta através do bambual para checar a estrada. Escura e negra e sem rastros onde atravessava o campo aberto. Os ventos tinham varrido as cinzas e o pó da superfície. Terras ricas outrora. Nenhum sinal de vida em parte alguma. Não era uma região que ele conhecesse. Os nomes das cidades ou dos rios. Venha, ele disse. Temos que ir.
Dormiam mais e mais. Mais de uma vez acordaram estendidos na estrada como vítimas do tráfego. O sono da morte. Ele se sentou tateando em busca do revólver. No entardecer de chumbo, ficou parado em pé apoiando os cotovelos na trave para empurrar o carrinho e olhando através dos campos para uma casa a talvez um quilômetro e meio de distância. Tinha sido o menino quem a enxergara, leriam que fazer algum esforço para chegar lá. Pegar os cobertores. Esconder o carrinho em algum lugar ao longo da estrada. Podiam alcançá-la antes de escurecer, mas não conseguiriam voltar.
Temos que ir dar uma olhada. Não temos escolha.
Eu não quero.
Faz dias que não comemos.
Não estou com fome.
Não, você está faminto.
Não quero ir até lá Papai.
Não tem ninguém lá. Eu prometo.
Como você sabe?
Eu simplesmente sei.
Eles poderiam estar lá.
Não estão não. Vai ficar tudo bem.
Partiram através dos campos embrulhados nos cobertores, levando apenas o revólver e uma garrafa d’água. O campo havia passado por uma última colheita e havia os ramos nus fincados no chão e o traço tênue do disco ainda estava visível de leste a oeste. Tinha chovido recentemente e a terra estava macia sob os pés e ele mantinha os olhos fixos no chão e antes que se passasse muito tempo ele parou e pegou uma ponta de flecha. Cuspiu nela e limpou a sujeira na costura de suas calças e deu-a ao menino. Era quartzo branco, perfeito como no dia em que tinha sido feito. Há mais, ele disse. Fique olhando o chão, você vai ver. Ele encontrou mais duas. Pederneira cinza. Depois encontrou uma moeda. Ou um botão. Uma grossa camada de verdete. Ele a raspou com a unha do polegar. Era uma moeda. Tirou sua faca e a desbastou com cuidado. A inscrição era em espanhol. Começou a chamar o menino até onde ele tinha ido e então olhou ao redor para a paisagem cinzenta e o céu cinzento e largou a moeda e se apressou para alcançá-lo.
Ficaram em frente à casa olhando para ela. Havia uma entrada de cascalho que fazia uma curva para o sul. Uma arcada aberta de tijolos. Escadaria dupla que levava à varanda com colunas. Nos fundos da casa uma dependência de tijolos que poderia outrora ter sido uma cozinha. Depois dela um casebre de madeira. Ele começou a subir a escada mas o menino puxou sua manga.