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Eu tenho te ouvido.

Não com muita atenção.

Não tem ninguém aqui. Faz anos que não tem ninguém aqui. Não há rastros nas cinzas. Nada está mexido. Nenhuma mobília queimada na lareira. Tem comida aqui.

Os rastros não ficam nas cinzas. Você mesmo disse. O vento sopra para longe.

Eu vou subir.

Ficaram na casa durante quatro dias comendo e dormindo. Ele tinha encontrado mais quatro cobertores no andar de cima e trouxeram pilhas grandes de madeira e as colocaram no canto da sala para secar. Ele encontrou uma antiga serra de lenha e arame que usou para serrar os ramos mortos. Os dentes estavam enferrujados e cegos e ele se sentou em frente do fogo com uma lima e tentou afiá-los mas não adiantou muito. Havia um riacho a uns cem metros da casa e ele transportou incontáveis baldes d’água pelos campos espetados e pela lama e esquentaram água e se lavaram numa banheira junto ao quarto dos fundos no andar de baixo e ele cortou os cabelos dos dois e fez a barba. Tinham roupas e cobertores e travesseiros dos quartos do andar de cima e colocaram as novas vestimentas, as calças do menino cortadas no comprimento com sua faca. Ele improvisou uma cama em frente à lareira, emborcando uma cômoda para usá-la como cabeceira para a cama e manter o calor. Durante todo o tempo continuou a chover. Ele pôs baldes debaixo das calhas nos cantos da casa para recolher água limpa do velho telhado de zinco e à noite podia ouvir a chuva martelando nos quartos de cima e gotejando pela casa.

Fizeram uma busca minuciosa pelos anexos procurando qualquer coisa que fosse útil. Encontrou um carrinho de mão e o apanhou e virou de cabeça para baixo e girou a roda devagar, examinando o pneu. A borracha estava vitrificada e rachada mas achou que talvez retivesse o ar e ele olhou em meio a caixas velhas e uma confusão de ferramentas e encontrou uma bomba de bicicleta e atarraxou a ponta da mangueira na haste de válvula do pneu e começou a bombear. Desatarraxou a mangueira e virou o carrinho do lado certo e deslizou-o sobre o chão para um lado e para o outro. Depois o levou para fora para que a chuva o lavasse. Quando saíram dois dias depois o tempo havia limpado e partiram empurrando o carrinho com seus novos cobertores e os jarros de comida em conserva envolvidos nas roupas extras. Ele tinha encontrado um par de sapatos de operário e o menino estava usando tênis azuis com trapos enfiados nos dedos e usavam lençóis limpos como máscaras no rosto. Quando chegaram ao asfalto tiveram que voltar pela estrada para pegar o carrinho mas ele estava a pouco mais de um quilômetro. O menino caminhava ao lado com uma das mãos no carrinho de mão. A gente agiu bem, não agiu Papai? ele disse. Agiu sim.

Comeram bem mas ainda estavam a uma boa distância da costa. Ele sabia que estava alimentando esperanças sem nenhum motivo. Esperava que tudo fosse ficar mais claro, mas sabia que o mundo se tornava mais escuro a cada dia. Uma vez tinha encontrado um fotômetro numa loja de equipamento fotográfico que pensou poder usar para tirar médias de luminosidade durante alguns meses

e levou-o consigo durante um bom tempo achando que pudesse encontrar baterias para ele mas nunca encontrou. À noite, quando acordava tossindo, se sentava com a mão comprimindo a cabeça contra a escuridão. Como um homem acordando num túmulo. Como aqueles mortos desenterrados da sua infância que tinham sido transferidos para dar lugar a uma estrada. Muitos tinham morrido numa epidemia de cólera e tinham sido enterrados às pressas em caixas de madeira e as caixas estavam apodrecendo e se desmanchando até abrir. Os mortos vieram à luz deitados de lado com as pernas para cima e alguns deitados de barriga. As moedas antigas de um verde fosco caíam das órbitas de seus olhos sobre o fundo manchado e apodrecido dos caixões.

Estavam parados num armazém numa cidadezinha onde uma cabeça de cervo empalhada pendia da parede. O menino ficou olhando para ela durante um bom tempo. Havia vidro quebrado no chão e o homem fez com que ele esperasse na porta enquanto tateava com os pés em meio ao lixo com seus sapatos de operário mas não encontrou nada. Havia duas bombas de gasolina lá fora e eles se sentaram no anteparo de concreto e abaixaram uma pequena lata de metal presa por uma corda até o tanque subterrâneo e a ergueram e despejaram a gasolina que havia nela num jarro de plástico e baixaram-na de novo. Tinham amarrado um pequeno pedaço de cano à lata para afundá-la e se agachavam junto ao tanque como macacos pescando com varas num formigueiro durante quase uma hora inteira até o jarro estar cheio. Então atarraxaram a tampa e colocaram o jarro na parte de baixo do carrinho e seguiram em frente.

Dias longos. Terreno aberto com as cinzas soprando sobre a estrada. O menino se sentava junto à fogueira à noite com os pedaços do mapa sobre os joelhos. Sabia os nomes das cidades e dos rios de cor e avaliava diariamente o progresso deles.

Comiam mais moderadamente. Já não lhes restava mais quase nada. O menino estava de pé na estrada segurando o mapa. Escutavam atentamente mas não ouviam nada. Ainda assim ele podia ver a região aberta a leste e o ar estava diferente. Chegaram até ali depois de uma curva na estrada e pararam e ficaram ali com o vento salgado soprando em seu cabelo onde tinham abaixado os capuzes dos casacos para escutar. Lá adiante estava a praia cinzenta com as ondas vagarosas rolando surdas e pesadas e seu som distante. Como a desolação de algum mar estrangeiro quebrando na costa de um mundo inaudito. Nos baixios formados pela maré lá adiante estava um petroleiro meio adernado. Para além dele o oceano vasto e frio e se movendo pesadamente como um tonel lentamente transbordante de escória e então a linha borrada e escura das cinzas. Ele olhou para o menino. Podia ver o desapontamento em seu rosto. Eu sinto muito que não seja azul, ele disse. Está tudo bem, o menino disse.

Uma hora depois estavam sentados na praia e olhando fixamente para a parede de nevoeiro e fumaça no horizonte. Estavam sentados com os calcanhares afundados na areia e observavam o mar deserto quebrar em seus pés. Frio. Desolado. Sem pássaros. Ele tinha deixado o carrinho em meio às samambaias para além das dunas e haviam levado cobertores consigo e se sentaram embrulhados neles no abrigo de uma grande tora de madeira trazida pelo mar. Ficaram sentados ali por um bom tempo. Ao longo da costa da enseada abaixo deles fileiras de ossinhos em meio aos destroços. Mais adiante as costelas embranquecidas pelo sal do que talvez tivesse sido gado. Geada de sal cinzento sobre as pedras. O vento soprava e sementes secas se precipitavam ao longo da areia e paravam e seguiam outra vez.

Você acha que poderia ter navios lá?

Acho que não.

Eles não conseguiriam enxergar muito longe. Não. Não conseguiriam.

O que tem do outro lado?

Nada.

Deve ter alguma coisa.

Talvez tenha um pai e seu filho e eles estejam sentados na praia.

Isso seria bom.

Sim. Isso seria bom.

E eles levariam fogo também?

E possível. Sim.

Mas nós não sabemos.

Nós não sabemos.

Então temos que estar vigilantes.

Temos que estar vigilantes. Sim.

Por quanto tempo podemos ficar aqui?

Não sei. Não temos muita coisa para comer.

Eu sei.

Você gosta.

Gosto.

Eu também.

Posso ir nadar?

Nadar?

É.

Você vai congelar o rabo.

Eu sei.

Vai estar frio de verdade. Mais do que você pensa. Tudo bem.

Não quero ter que entrar para te trazer.

Você acha que eu não devia ir.

Você pode ir.

Mas você acha que eu não devia.

Não. Acho que você devia.

Mesmo?

Sim. Mesmo.

Está bem.