Ele se levantou e deixou o cobertor cair na areia e depois tirou o casaco, os sapatos e as roupas. Ficou nu, de pé, agarrando o próprio corpo e dançando. Então foi correndo até a praia. Tão pálido. Espinha saliente. As omoplatas afiadas serrando a pele clara. Correndo nu e pulando e gritando no rolo vagaroso da arrebentação.
Quando saiu estava azul de frio e batia os dentes. Ele caminhou até encontrá-lo e o envolveu tremendo no cobertor e o abraçou até ele parar de arquejar. Mas quando olhou o menino estava chorando. O que foi? ele disse. Nada. Não, me diga. Nada. Não foi nada.
Quando escureceu fizeram uma fogueira junto à tora de madeira e comeram pratos de quiabo e feijão e o resto das batatas enlatadas. As frutas já tinham acabado fazia muito. Beberam chá e ficaram sentados junto à fogueira e dormiram na areia e ficaram escutando a arrebentação na enseada. Seu longo estremecimento e queda.
Ele se levantou à noite e caminhou e ficou parado na praia envolvido pelos cobertores. Escuro demais para ver. Gosto de sal nos lábios. Esperando. Esperando. Depois o estrondo vagaroso caindo na direção da costa. Seu assobio fervilhante lavando a praia e correndo de volta. Ele pensou que ainda poderia haver navios da morte lá longe, vagando a esmo com seus indolentes trapos de velas. Ou vida nas profundezas. Grandes polvos propelindo-se sobre o solo marinho na escuridão fria. Movendo-se como trens, os olhos do tamanho de pires. E talvez para além daquelas ondas encobertas um outro homem caminhasse mesmo com uma outra criança na areia cinzenta e morta. Dormindo afastados apenas por um mar em outra praia em meio às cinzas amargas do mundo ou estivessem de pé com seus trapos perdidos para o mesmo sol indiferente.
Ele se lembrava de ter acordado uma vez numa noite semelhante e ouvido o ruído de caranguejos na panela onde havia deixado ossos de carne da noite anterior. Carvões quase extintos da fogueira feita com pedaços de madeira pulsando sob o vento costeiro. Deitado sob uma miríade semelhante de estrelas. O horizonte negro do mar. Ele se levantou, caminhou, parou descalço na areia e ficou observando a espuma pálida aparecer ao longo de toda a costa e rolar e arrebentar e ficar escura outra vez. Quando voltou para junto da fogueira, se ajoelhou e alisou o cabelo dela enquanto ela dormia e disse que se fosse Deus teria feito o mundo exatamente daquele jeito sem nenhuma diferença.
Quando voltou o menino estava acordado e sentia medo. Estivera chamando mas não alto o suficiente para que ele pudesse ouvi-lo. O homem colocou os braços ao seu redor. Não consegui te ouvir, ele disse. Não consegui te ouvir por causa das ondas. Pôs madeira no fogo e o abanou até reavivá-lo e ficaram deitados em seus cobertores observando as chamas serpenteando no vento e depois dormiram.
Pela manhã ele reacendeu a fogueira, comeram e ficaram observando a costa. Seu aspecto frio e chuvoso não muito diferente das paisagens marinhas no mundo ao norte. Não havia gaivotas ou pássaros costeiros. Artefatos carbonizados e inúteis espalhados pela costa ou rolando na arrebentação. Eles juntaram madeira deixada pelo mar e a empilharam e cobriram com a lona e depois partiram pela praia. Somos vagabundos de praia, ele disse.
O que é isso?
Pessoas que andam pela praia procurando coisas de valor que podem ter sido levadas pelas ondas.
Que tipo de coisas?
Todo tipo de coisas. Tudo o que você possa usar.
Você acha que a gente vai encontrar alguma coisa?
Não sei. Vamos dar uma olhada.
Dar uma olhada, o menino disse.
Estavam parados no quebra-mar de pedra e olhavam para o sul. Uma cusparada cinzenta de sal estendendo-se e se enroscando no poço de rochas. A curva comprida da praia lá adiante. Cinzenta como areia vulcânica. O vento soprando da água cheirava levemente a iodo. Isso era tudo. Não havia cheiro de mar nele. Nas rochas os restantes de algum musgo marinho escuro. Atravessaram e seguiram em frente. No final da praia seu caminho estava barrado por um promontório e eles deixaram a praia e tomaram um caminho antigo através das dunas e através dos arbustos mortos até chegarem a um promontório baixo. Abaixo deles um pedaço de terra amortalhado no vento úmido escuro soprando encosta abaixo e para além dele meio inclinado e afundado o vulto do casco de um barco a vela. Eles se agacharam nos tufos secos de capim e ficaram observando. O que a gente faz? o menino disse.
Vamos só ficar olhando por um tempo.
Estou com frio.
Eu sei. Vamos um pouco mais para baixo. Sair do vento.
Ele ficou sentado abraçando o menino à sua frente. O capim se sacudia de leve. Lá fora uma desolação cinzenta. O arrastar-se infinito do mar.
Por quanto tempo a gente vai ter que ficar aqui? o menino disse.
Não muito.
Você acha que tem gente no barco, Papai?
Não acho.
Eles estariam todos inclinados.
Estariam sim. Você consegue ver algum rastro por lá?
Não.
Vamos só esperar um pouco.
Estou com frio.
Foram caminhando pela curva crescente da praia, mantendo-se sobre a terra mais firme abaixo da faixa de destroços trazidos pela maré. Pararam, suas roupas se agitando suavemente. Pedaços de vidro flutuando cobertos com uma crosta cinzenta. Os ossos de pássaros marinhos. Na linha da arrebentação uma esteira tecida com algas e espinhas de peixe aos milhões se estendendo pela costa até onde os olhos podiam ver como uma sequência de ondulações da morte. Um vasto sepulcro de sal. Disparatado. Disparatado.
Do fim da língua de terra até o barco havia talvez trinta metros de mar aberto. Ficaram parados olhando para o barco. Cerca de sessenta pés de comprimento, sem nada no convés, emborcado em três ou quatro metros d’água. Tinha sido aigum tipo de veleiro de mastro duplo mas os mastros estavam quebrados quase rente ao convés e as únicas coisas que restavam eram alguns cunhos de bronze e uns poucos postes do guarda-mancebo nas extremidades do convés. Isso e a roda de leme projetando-se do cockpit. Ele se virou e estudou a praia e as dunas para além dela. Depois entregou ao menino o revólver, se sentou na areia e começou a desamarrar os cadarços do sapato.
O que você vai fazer, Papai?
Dar uma olhada.
Posso ir com você?
Não. Você tem que ficar aqui.
Quero ir com você.
Você tem que ficar de vigia. E além disso a água é funda.
Eu vou poder te ver?
Sim. Vou ficar monitorando você. Para me certificar de que tudo está bem.
Quero ir com você.
Ele parou. Você não pode, falou. O vento vai levar nossas roupas para longe. Alguém tem que tomar conta das coisas.
Dobrou tudo e formou uma pilha. Deus, como estava frio. Ele se abaixou e beijou o menino na testa. Pare de se preocupar, disse. É só ficar atento.Avançou nu para dentro d’água e parou e se molhou. Então seguiu revolvendo a água e mergulhou de cabeça.Nadou ao longo do casco de metal e fez a volta, abrindo caminho na água, arquejante de frio. A meia-nau os cabos do guarda-mancebo chegavam até a água. Ele se arrastou pelos cabos até a popa. O aço era cinzento e esbranquiçado de sal, mas ele podia divisar as letras douradas e gastas. Pájaro de Esperanza. Tenerife. Um par vazio de turcos para um bote. Ele se segurou na amurada e tomou impulso para subir no barco e se virou e se agachou tremendo no plano inclinado do convés de madeira. Uns poucos pedaços do estaiamento partidos nos esticadores. Rombos na madeira de onde as ferragens tinham sido arrancadas. Alguma força terrível capaz de varrer tudo do convés. Acenou para o menino mas ele não acenou de volta.
A cabine era baixa com um teto abobadado e vigias na lateral. Ele se agachou e limpou o sal cinzento e olhou lá dentro mas não conseguiu enxergar nada. Tentou a porta baixa de teca mas estava trancada. Deu-lhe um empurrão com seu ombro ossudo. Olhou ao redor em busca de alguma coisa com que pudesse forçá-la. Tremia de modo incontrolável e seus dentes batiam. Pensou em chutar a porta com a planta do pé mas achou que não era uma boa ideia. Segurou o cotovelo com a mão e bateu com força na porta outra vez. Sentiu-a ceder. Muito de leve. Continuou tentando. O umbral estava rachando por dentro e por fim cedeu e ele a abriu com um empurrão e desceu a escada de tombadilho até a cabine. Água estagnada ao longo do anteparo inferior cheia de papéis molhados e lixo. Um cheiro azedo em toda parte. Úmido e desagradável. Ele achou que o barco tinha sido saqueado, mas era o mar que tinha feito aquilo. Havia uma mesa de mogno no meio do salão com anteparos presos com dobradiças. As portas do paiol pendendo abertas no cômodo e todos os detalhes de metal de um verde baço. Vasculhou as cabines de proa. Passou pela cozinha. Farinha e café no chão e comida enlatada meio esmagada e enferrujando. Um banheiro com um vaso sanitário e uma pia de aço inoxidável. A luz fraca do mar entrava pelas vigias clerestório. Equipamento espalhado por toda parte. Um colete salva-vidas flutuando na água.