Ele meio que esperava algum horror mas não havia nenhum. Os colchões nas cabines tinham sido arremessados no chão e a roupa de cama estava empilhada junto à parede. Tudo molhado. Havia uma porta aberta dando para o paiol na proa mas estava escuro demais para ver lá dentro. Ele enfiou a cabeça, entrou e tateou ao redor. Latões compridos com tampas de madeira e dobradiças. Equipamentos de navegação empilhados no chão. Ele começou a arrastar tudo para fora e empilhar na cama inclinada. Cobertores, roupas para mau tempo. Descobriu um suéter úmido e o enfiou pela cabeça. Encontrou um par de botas impermeáveis amarelas de borracha e um casaco de náilon e vestiu-o fechando o zíper e colocou as calças rígidas e amarelas das roupas náuticas e passou os suspensórios por cima dos ombros e calçou as botas. Depois voltou ao convés. O menino estava sentado conforme ele o deixara, observando o navio. Ele se levantou alarmado e o homem se deu conta de que em suas novas roupas ele era um vulto incerto. Sou eu, gritou, mas o menino simplesmente ficou parado ali e ele acenou e voltou a descer.
No segundo camarote particular havia gavetas sob o beliche que ainda estavam no lugar e ele as levantou para liberá-las e as puxou. Manuais e papéis em espanhol. Barras de sabão. Uma valise preta de couro coberta de mofo com papéis dentro. Colocou o sabão no bolso do casaco e se pôs de pé. Havia livros em espanhol espalhados sobre o beliche, inchados e disformes. Um único volume enfiado na prateleira contra o anteparo dianteiro.
Encontrou uma bolsa de lona emborrachada e vagueou pelo resto do navio usando as botas, apoiando-se nos anteparos por causa da inclinação, as calças amarelas impermeáveis fazendo ruído no frio. Encheu a bolsa com roupas avulsas. Um par de tênis femininos que achou que fossem caber no menino. Um canivete com cabo de madeira. Um par de óculos de sol. Ainda assim havia algo de perverso em sua busca. Era como vasculhar exaustivamente primeiro os lugares menos prováveis ao procurar algo que havia sido perdido. Por fim entrou na cozinha. Ligou o fogão e desligou-o de novo.
Levantou o trinco da escotilha que dava para o compartimento do motor e abriu-a. Parcialmente alagado e escuro como breu. Não havia cheiro de gasolina ou óleo. Fechou-o outra vez. Havia paióis construídos sob os bancos da cabine que abrigavam almofadas, lonas de vela, redes de pescar. Num paiol atrás do pedestal do leme ele encontrou rolos de cabos de náilon e garrafas de aço com gasolina e uma caixa de fibra de vidro para ferramentas. Sentou-se no chão da cabine e examinou as ferramentas. Enferrujadas mas aproveitáveis. Alicates, chaves de fenda, chaves inglesas. Fechou a lingueta da caixa de ferramentas e procurou pelo menino. Ele estava encolhido na areia adormecido com a cabeça sobre a pilha de roupas.
Levou a caixa de ferramentas e uma das garrafas de gasolina para a cozinha e foi para a proa fazer uma última revista nas cabines. Então se pôs a verificar os paióis na sala, vasculhando pastas e papéis em caixas de plástico, tentando encontrar o diário de bordo do barco. Encontrou um jogo de porcelana embalada e sem uso num caixote de madeira cheio de peças requintadas. A maioria quebrada. Serviço para oito, levando o nome do barco. Um presente, ele pensou. Ergueu uma xícara de chá e virou-a na palma da mão e a colocou de volta. A última coisa que encontrou foi uma caixa quadrada de carvalho com quinas entalhadas e uma placa de bronze sobre a tampa. Pensou que podia ser um humidor mas tinha o formato errado e, ao apanhá-la e avaliar seu peso, soube o que era. Deslocou os trincos já meio corroídos e abriu-a. Lá dentro havia um sextante de bronze, talvez com cem anos de idade. Ergueu-o do estojo e o segurou na mão. Encantado com sua beleza. O bronze estava fosco e havia manchas esverdeadas que assumiam a forma de uma outra mão que outrora o segurara, mas fora isso estava perfeito. Limpou a superfície esverdeada da lâmina na base. Hezzaninth, Londres. Segurou-o junto aos olhos e girou a rosca. Era a primeira coisa que ele via depois de um bom tempo capaz de emocioná-lo. Segurou-o na mão e em seguida o colocou de volta na baeta azul do estojo e fechou a tampa e os trincos e colocou-a de volta no paiol e fechou a porta.
Quando voltou ao convés para procurar o menino o menino não estava lá. Um momento de pânico antes de vê-lo caminhando pelo banco de areia com o revólver pendendo da mão, a cabeça baixa. De pé, ali, ele sentiu o casco do navio se levantar e deslizar. De leve. A maré subindo. Batendo contra as pedras do quebra-mar lá adiante. Ele se virou e voltou para a cabine.
Ele tinha levado dois rolos de cabo do paiol e mediu seu diâmetro com a palma da mão somando três e depois contou o número de voltas de cada rolo. Quinze metros de corda. Pendurou-as num cunho no convés de teca cinzenta e voltou para a cabine lá embaixo. Recolheu tudo e empilhou junto à mesa. Havia alguns jarros de plástico para água no paiol que ficava junto à cozinha mas estavam todos vazios exceto um. Ele pegou um dos vazios e viu que o plástico tinha rachado e que a água vazara e adivinhou que eles tinham congelado em algum lugar nas viagens sem rumo do barco. Provavelmente várias vezes. Pegou o jarro cheio até a metade, colocou-o na mesa e desatarraxou a tampa, cheirou a água e depois levantou o jarro com as duas mãos e bebeu. Depois bebeu de novo.
As latas na cozinha não pareciam de modo algum aproveitáveis e mesmo no paiol havia algumas que estavam muito enferrujadas e algumas que tinham um aspecto ameaçadoramente inchado. Todas haviam tido seus rótulos removidos e o conteúdo estava escrito no metal com marcador preto em espanhol. Nem tudo ele entendia. Examinou-as, sacudindo-as, espremendo-as com a mão. Empilhou-as no balcão acima da pequena geladeira da cozinha. Pensou que devia haver caixotes de alimentos guardados em algum lugar no porão mas não achava que qualquer um deles fosse comestível. Em todo caso havia um limite para o que podiam levar no carrinho. Ocorreu-lhe que encarava essa sorte inesperada de um modo perigosamente confiante mas mesmo assim disse o que havia dito antes. Que a sorte pode não ser bem isso. Havia algumas noites em que, deitado na escuridão, ele não invejava os mortos.
Encontrou uma lata de azeite de oliva e algumas latas de leite. Chá numa caixinha de metal enferrujada. Um recipiente de plástico em que havia algum tipo de refeição que ele não reconhecia. Uma lata de café cheia até a metade. Percorreu metodicamente as prateleiras no paiol, separando o que devia levar do que devia deixar. Quando já tinha levado tudo para a sala e empilhado junto à escada de tombadilho, voltou à cozinha e abriu a caixa de ferramentas e se pôs a remover um dos queimadores do pequeno fogão montado para resistir às oscilações do mar. Desconectou a mangueira trançada e removeu os prendedores de alumínio dos queimadores e colocou um deles no bolso do casaco. Afrouxou os acessórios de metal com um puxão e soltou os queimadores. Depois desconectou-os e prendeu a mangueira ao cano e ajustou a outra ponta da mangueira à garrafa de gasolina e levou-a para a sala. Por último fez uma trouxa com uma lona de plástico onde colocou algumas latas de suco e latas de frutas e vegetais e a amarrou com uma corda e depois tirou as roupas e empilhou-as em meio às coisas que tinha recolhido e foi até o convés nu e escorregou até a amurada com a lona e se lançou pela lateral e caiu no mar cinzento e gelado.