Passaram a maior parte da manhã esvaziando o barco. Ele deixou uma fogueira acesa e chapinhava na areia vindo do mar nu e tremendo e deixava cair o cabo de reboque e ficava parado no calor das chamas enquanto o menino trazia a sacola por entre as fofas ondulações do terreno e a arrastava até a praia. Esvaziaram a sacola e estenderam cobertores e roupas sobre a areia morna para secar diante do fogo. Havia mais coisas no barco do que podiam carregar e ele pensou que podiam ficar alguns dias na praia e comer o máximo que pudessem, mas era perigoso. Dormiram aquela noite na areia com a fogueira mantendo o frio afastado e suas coisas espalhadas por toda parte ao redor deles. Ele acordou tossindo e se levantou e bebeu um pouco d’água e arrastou mais madeira para a fogueira, toras inteiras que projetaram uma grande cascata de centelhas. A madeira salgada queimava laranja e azul no coração da fogueira e ele ficou sentado observando durante um bom tempo. Mais tarde caminhou praia acima, sua sombra comprida se projetando na areia diante dele, oscilando com o vento na fogueira. Tossindo. Tossindo. Ele se curvou para a frente, segurando os joelhos. Gosto de sangue. As ondas vagarosas se arrastavam e fervilhavam no escuro e ele pensou em sua vida mas não havia nenhuma vida em que pensar e depois de um tempo caminhou de volta. Pegou uma lata de pêssegos da mochila, abriu-a e se sentou diante da fogueira e comeu os pêssegos devagar com sua colher enquanto o menino dormia. O fogo cintilava sob o vento e as centelhas se perdiam numa corrida pela areia. Colocou as latas vazias entre os pés. Cada dia é uma mentira, falou. Mas você está morrendo. Isso não é uma mentira.
Carregaram suas novas provisões empacotadas em lonas ou cobertores pela praia e colocaram tudo no carrinho. O menino tentou carregar coisa demais e quando pararam para descansar ele tinha pego parte do fardo e colocado junto com o seu. O barco tinha se deslocado ligeiramente com a tempestade. Ele ficou parado olhando para lá. O menino o observava. Você vai voltar lá?
Acho que sim. Uma última olhada.
Estou com um pouco de medo.
Está tudo bem. É só ficar de olho.
A gente tem mais coisas do que consegue carregar agora.
Eu sei. Só quero dar uma olhada.
Tudo bem.
Ele percorreu o navio da proa à popa de novo. Pare. Pense. Sentou-se no chão da sala principal com os pés nas botas de borracha apoiados no pedestal da mesa. Já estava escurecendo. Tentou se lembrar do que sabia acerca de barcos. Levantou-se e foi outra vez para o convés. O menino estava sentado junto à fogueira. Ele desceu até o cockpit e se sentou no banco, as costas contra o anteparo, os pés no convés qua.se que no nível dos olhos. Não usava nada além do suéter e a roupa náutica por cima, mas esquentavam pouco e ele não conseguia parar de tremer. Estava prestes a se levantar de novo quando se deu conta de que estivera olhando para os ferrolhos do anteparo na outra extremidade da cabine. Havia quatro deles. Aço inoxidável. Em outra época os bancos ficavam cobertos de almofadas e ele ainda podia ver os cordões que as prendiam antes de terem sido arrancadas dali. No centro inferior do cockpit, logo acima do assento, havia uma tira de náilon se projetando, a ponta dobrada e costurada em cruz. Olhou outra vez para as trancas. Eram ferrolhos giratórios com asas para os polegares. Ele se levantou e se ajoelhou no banco e virou cada um deles totalmente para a esquerda. Estavam presos com molas e, quando ele soltou, pegou a tira no fundo da borda, puxou-a e a borda escorregou e se soltou. Ali embaixo do convés havia um espaço que continha duas velas enroladas e o que parecia ser um bote de borracha para duas pessoas enrolado e amarrado com cabos elásticos. Um par de pequenos remos de plástico. Uma caixa de sinalizadores. E atrás dela havia uma caixa de ferramentas variadas, a tampa selada com fita isolante preta. Ele puxou-a para abri-la e encontrou a ponta da fita isolante e arrancou-a de toda a volta e destravou as fivelas de cromo e abriu a caixa. Dentro havia uma lanterna amarela de plástico, uma luz estroboscópica alimentada por uma pilha, um estojo de primeiros socorros. Um transmissor de localização de plástico amarelo. E um estojo preto mais ou menos do tamanho de um livro. Ele ergueu-o, destravou os ferrolhos e o abriu. Dentro estava acomodada uma velha pistola sinalizadora de bronze de 37 milímetros. Ele tirou-a da caixa com as duas mãos, virou-a e olhou para ela. Abaixou a alavanca e abriu-a. A culatra estava vazia mas havia oito balas sinalizadoras acomodadas num recipiente de plástico, pequenas e atarracadas e com aspecto de novas. Ele acomodou o revólver outra vez na caixa e fechou a rampa e baixou a tranca.
Ele chapinhou até a praia tremendo e tossindo e se embrulhou num cobertor e se sentou na areia morna em frente à fogueira com as caixas ao seu lado. O menino se agachou e tentou passar os braços ao redor dele, o que pelo menos trouxe um sorriso.
O que você encontrou, Papai? ele disse.
Encontrei um estojo de primeiros socorros. E encontrei uma pistola sinalizadora.
O que é isso?
Vou te mostrar. E usada para sinalizar.
Era isso o que você queria procurar?
Sim.
Como você sabia que estava lá?
Bem, eu esperava que estivesse lá. Foi principalmente sorte.
Ele abriu o estojo e virou-o para o menino ver.
É uma arma.
Uma arma sinalizadora. Atira uma coisa no ar e faz uma luz bem forte.
Posso ver?
Claro que pode.
O menino ergueu a arma do estojo e segurou-a. Você pode atirar em alguém com ela? ele disse.
Poderia.
E mataria a pessoa?
Não. Mas poderia colocar fogo nela.
Foi por isso que você pegou?
Sim.
Porque não tem ninguém pra quem sinalizar. Tem?
Não.
Eu gostaria de ver.
Quer dizer atirar?
É.
Podemos atirar.
De verdade?
Claro.
No escuro?
Sim. No escuro.
Podia ser tipo uma comemoração.
Tipo uma comemoração. Sim.
Podemos atirar hoje à noite?
Por que não?
Está carregada?
Não. Mas podemos carregar.
O menino ficou parado segurando a arma. Apontou-a na direção do mar. Uau, ele disse.
Ele se vestiu e saíram pela praia levando o resto da sua pilhagem. Para onde você acha que as pessoas foram, Papai? As que estavam no barco?
É.
Não sei.
Você acha que elas morreram?
Não sei.
Mas as probabilidades não são favoráveis a elas.
O homem sorriu. As probabilidades não são favoráveis a elas?
Não. São?
Não. Provavelmente não.
Acho que elas morreram.
Talvez tenham morrido.
Acho que foi o que aconteceu com elas.
Poderiam estar vivas em algum lugar, o homem disse. É possível. O menino não respondeu. Seguiram em frente. Tinham envolvido os pés com pano de vela e os coberto com sapatilhas de plástico azul cortadas de uma lona e deixavam pegadas estranhas em suas idas e vindas. Ele pensou no menino e nas preocupações dele e depois de um tempo disse: Você provavelmente está certo. Acho provável que estejam mortos.
Porque se eles estivessem vivos estaríamos pegando as coisas deles.
E não estamos pegando as coisas deles.
Eu sei.
Quantas pessoas você acha que estão vivas?
No mundo?
No mundo. Sim.
Não sei. Vamos parar para descansar.
Está bem.
Você está me cansando.
Está bem.
Eles se sentaram em meio às suas trouxas.
Quanto tempo a gente pode ficar aqui, Papai?
Você já me perguntou isso.
Eu sei.
Vamos ver.
Isso quer dizer não muito tempo.
Provavelmente.
O menino abria buracos na areia com os dedos até ter um círculo deles. O homem o observava. Não sei quantas pessoas há, ele disse. Não acho que haja muitas.
Eu sei. Ele puxou o cobertor por cima dos ombros e olhou para a praia cinzenta e árida.
O que foi? o homem disse.