– Senhor príncipe – Fedor fez o cavalo se aproximar. – Pode ser que os Stark não tenham vindo por aqui. Se eu fosse eles, iria pra norte e pra leste, talvez. Pros Umber. São bons homens dos Stark. Mas as terras deles ficam longe. Os garotos vão se abrigar em algum lugar mais perto. Talvez eu saiba onde.
Theon olhou-o com suspeita.
– Diga.
– Conhece aquele velho moinho isolado no Água de Bolotas? Paramos lá quando eu tava sendo levado preso pra Winterfell. A mulher do moleiro vendeu forragem pros cavalos, enquanto aquele velho cavaleiro cacarejava com os fedelhos dela. Pode ser que os Stark estejam escondidos lá.
Theon conhecia o moinho. Até se enrolara com a mulher do moleiro uma vez ou duas. Nada havia de especial no moinho ou nela.
– Por que lá? Há uma dúzia de aldeias e castros a mesma distância.
Divertimento brilhou naqueles olhos claros.
– Por quê? Ora, isso não sei. Mas eles tão lá, tenho um pressentimento.
Estava ficando farto das respostas dissimuladas do homem. Seus lábios parecem dois vermes fodendo.
– O que você está dizendo? Se me escondeu alguma coisa que sabia…
– Senhor príncipe? – Fedor desmontou, e fez sinal a Theon para imitá-lo. Quando ficaram ambos apeados, abriu o saco de pano que trouxera de Winterfell. – Olhe aqui.
Estava ficando difícil enxergar. Theon enfiou impacientemente a mão no saco, apalpando peles suaves e lã áspera. Uma ponta afiada furou sua pele, e seus dedos fecharam-se em torno de algo frio e duro. Tirou do saco um broche em forma de cabeça de lobo, de prata e azeviche. O entendimento veio na hora. Sua mão fechou-se num punho.
– Gelmarr – disse, perguntando-se em quem poderia confiar. Em nenhum deles. – Aggar, Rednose. Conosco. O resto de vocês pode retornar a Winterfell com os cães. Não vou precisar mais deles. Agora sei onde se escondem Bran e Rickon.
– Príncipe Theon – rogou Meistre Luwin –, vai se lembrar de sua promessa? Falou de misericórdia.
– A misericórdia era para hoje de manhã – Theon respondeu. É melhor ser temido do que motivo de troça. – Antes de terem me irritado.
Jon
Conseguiam ver a fogueira na noite, cintilando contra o flanco da montanha como uma estrela caída. Ardia mais vermelha do que as outras estrelas, e não tremeluzia, embora às vezes seu brilho se intensificasse, e outras, se reduzisse a não mais do que uma centelha distante, tênue e pouco luminosa.
Oitocentos metros para a frente e seiscentos para cima, calculou Jon, e perfeitamente colocada para ver qualquer coisa que se mova no passo abaixo.
– Vigias no Passo dos Guinchos – disse, com um tom de interrogação, o mais velho do grupo. Na primavera da juventude havia sido escudeiro de um rei, e os irmãos negros ainda o chamavam de Escudeiro Dalbridge. – Pergunto-me o que será que Mance Rayder teme.
– Se ele soubesse que iam acender uma fogueira, teria esfolado os pobres coitados – disse Ebben, um homem calvo e atarracado, musculoso como um saco de pedras.
– O fogo é vida aqui em cima – interveio Qhorin Meia-Mão –, mas também pode ser morte – obedecendo a ordens suas, não arriscaram chamas abertas desde que tinham penetrado nas montanhas. Comiam carne salgada fria, pão duro e queijo ainda mais duro, e dormiam vestidos e aninhados uns aos outros, debaixo de uma pilha de mantos e peles, gratos pelo calor dos companheiros. Aquilo trazia a Jon recordações de noites frias passadas havia muito tempo em Winterfell, quando dividia a cama com os irmãos. Aqueles homens também eram irmãos, embora a cama que partilhassem fosse de pedra e terra.
– Devem ter um berrante – Cobra das Pedras observou.
Meia-Mão respondeu:
– Um berrante que não podem soprar.
– Essa é uma escalada longa e dura para ser feita de noite – Ebben rebateu, enquanto espreitava a centelha distante por uma fenda entre os rochedos que os abrigavam. O céu apresentava-se sem nuvens, com as montanhas escarpadas erguendo-se negras sobre negro até os cumes, onde suas frias coroas de neve e gelo brilhavam palidamente ao luar.
– E uma longa queda – disse Qhorin Meia-Mão. – Dois homens, acho. É provável que estejam dois lá em cima, vigiando por turnos.
– Eu – o patrulheiro que chamavam Cobra das Pedras já mostrara ser o melhor escalador do grupo. Teria de ser ele.
– E eu – Jon Snow se ofereceu.
Qhorin Meia-Mão olhou-o. Jon ouvia os lamentos que o vento soltava ao atravessar oscilante o passo de altitude acima deles. Um dos garranos relinchou e escavou o solo pedregoso da cavidade onde tinham se abrigado.
– O lobo ficará conosco – disse Qhorin. – É demasiado fácil ver pelo branco ao luar – virou-se para Cobra das Pedras: – Quando a coisa estiver feita, atire para baixo um tição ardente. Subiremos quando o virmos cair.
– Não há melhor momento para começar do que agora – Cobra das Pedras respondeu.
Cada um levou um comprido rolo de corda. Cobra das Pedras levava também um saco de espigões de ferro, e um pequeno martelo com a cabeça enrolada em feltro espesso. Deixaram os garranos para trás, com os elmos, a cota de malha e Fantasma. Jon ajoelhou-se e deixou que o lobo gigante encostasse o focinho em seu rosto antes de se porem a caminho.
– Fica – ele ordenou. – Eu venho te buscar.
Cobra das Pedras foi na dianteira. Era um homem baixo e nervoso, com quase cinquenta anos e de barba grisalha, mais forte do que parecia, e tinha os melhores olhos noturnos que Jon já vira. Naquela noite iria precisar deles. De dia, as montanhas eram azul-acinzentadas, pintadas de geada, mas assim que o sol desaparecia atrás dos picos irregulares tornavam-se negras. Agora, a lua nascente iluminara-as de branco e prata.
Os irmãos negros moviam-se através de sombras negras por entre rochedos negros, abrindo caminho por uma trilha íngreme e sinuosa, enquanto seus hálitos se congelavam no ar negro. Jon sentia-se quase nu sem a cota de malha, mas não tinha saudades de seu peso. Aquele era um percurso duro e lento. Apressar-se ali era arriscar um tornozelo quebrado ou coisa pior. Cobra das Pedras parecia saber onde pôr os pés como que por instinto, mas Jon precisava ser mais cuidadoso no terreno rachado e irregular.
Passo dos Guinchos era na verdade uma série de passos, um longo caminho sinuoso que subia em volta de uma sucessão de picos gelados esculpidos pelo vento, e descia por vales escondidos que raramente viam o sol. Fora seu companheiro, Jon não tinha vislumbrado uma alma viva desde que deixaram a floresta para trás e começaram a subir. As Presas de Gelo eram mais cruéis que qualquer outro lugar criado pelos deuses, e igualmente inimigas do homem. Ali em cima, o vento cortava como uma faca, e gritava estridentemente na noite como uma mãe chorando pelos filhos assassinados. As poucas árvores que se viam ali eram coisas atrofiadas e grotescas que nasciam, nas laterais de fendas e fissuras. Saliências de rocha debruçavam-se frequentemente sobre a trilha, debruadas com pingentes de gelo, que a distância se assemelhavam a longos dentes brancos.
Mas, mesmo assim, Jon Snow não se arrependia de ter vindo. Ali também havia maravilhas. Tinha visto a luz do sol refletida em quedas d’água estreitas e geladas que mergulhavam sobre as bordas de bruscos penhascos de pedra, e um prado de montanha cheio de flores silvestres de Outono, frentes frias azuis, brilhantes gelardentes escarlates e maciços de capim-dos-flautistas, castanho-avermelhados e dourados. Olhara para ravinas tão profundas e negras, parecendo-lhe seguro que terminariam num inferno qualquer, e atravessara, montado no garrano, uma ponte de pedra natural, corroída pelo vento, sem nada a não ser céu de um lado e do outro. Águias faziam ninhos nas alturas e desciam para caçar nos vales, voando sem esforço, aos círculos, apoiadas em grandes asas azul-acinzentadas que pareciam quase fazer parte do céu. Certo dia viu, inclusive, um gato-das-sombras perseguindo um carneiro, fluindo pela vertente da montanha como fumaça líquida até ficar pronto para saltar sobre a presa.