Na frescura da sua tenda, Dany esturricou carne de cavalo sobre um braseiro e refletiu sobre suas alternativas. Ali havia comida e água para sustentá-los, e grama suficiente para os cavalos recuperarem as forças. Como seria agradável acordar todos os dias no mesmo lugar, passear por jardins sombreados, comer figos e beber água fresca, tanta quanta quisesse.
Quando Irri e Jhiqui retornaram com vasilhas cheias de areia branca, Dany despiu-se e deixou que esfregassem sua sujeira.
– Seu cabelo está voltando, Khaleesi – Jhiqui lhe disse enquanto sacudia areia das suas costas. Dany passou a mão pela cabeça, tateando os novos cabelos. Os homens dothrakis usavam o cabelo preso em longas tranças oleadas e só o cortavam quando eram derrotados. Talvez deva fazer o mesmo, ela pensou. Para lembrá-los de que a força de Drogo vive agora em mim. Khal Drogo tinha morrido com o cabelo sem cortar, algo de que poucos homens podiam se vangloriar.
Do outro lado da tenda, Rhaegal abriu suas asas verdes, bateu-as e flutuou num voo curto até voltar a cair no tapete. Quando aterrissou, a cauda chicoteou em fúria, e ele levantou a cabeça e gritou. Se eu tivesse asas, também iria querer voar, Dany pensou. Os Targaryen de outrora tinham montado no lombo de dragões quando partiam para a guerra. Tentou imaginar como seria pôr as pernas em torno do pescoço de um dragão e voar alto no céu. Seria como estar no topo de uma montanha, mas melhor. O mundo inteiro ia se espalhar por baixo. Se voasse alto o suficiente, poderia até ver os Sete Reinos, erguer a mão e tocar o cometa.
Irri interrompeu sua divagação para lhe dizer que Sor Jorah Mormont estava lá fora, à espera das suas ordens.
– Mande-o entrar – Dany ordenou, sentindo um formigamento na pele esfregada com areia. Envolveu-se na pele de leão. O hrakkar tinha sido muito maior do que Dany, então a pele cobria tudo o que precisava ser coberto.
– Trouxe-lhe um pêssego – disse Sor Jorah, ajoelhando-se. Era tão pequeno que Dany quase podia escondê-lo na palma da mão, e também estava maduro demais, mas, quando deu a primeira dentada, o miolo era tão doce que quase chorou. Comeu-o lentamente, saboreando cada pedaço, enquanto Sor Jorah lhe falava da árvore de onde o arrancara, num jardim perto da muralha ocidental.
– Fruta, água e sombra – Dany disse, com o rosto melado de sumo de pêssego. – Os deuses foram bons por nos trazer para este lugar.
– Devemos descansar aqui até ficarmos mais fortes – sugeriu o cavaleiro. – As terras vermelhas não são gentis para com os fracos.
– Minhas aias dizem que aqui há fantasmas.
– Há fantasmas por todo o lado – Sor Jorah respondeu em voz baixa. – Iremos levá-los conosco para onde quer que formos.
Sim, Dany pensou. Viserys, Khal Drogo, meu filho Rhaego, estão sempre comigo.
– Diga-me o nome do seu fantasma, Jorah. Conhece todos os meus.
O rosto dele ficou muito quieto.
– O nome dela era Lynesse.
– Sua esposa?
– Minha segunda esposa.
Dói-lhe falar dela, Dany percebeu, mas queria conhecer a verdade.
– Isso é tudo o que quer dizer dela? – a pele de leão deslizou por um ombro e ela a puxou de volta para seu lugar. – Era bonita?
– Muito bonita – Sor Jorah ergueu os olhos do seu ombro para o rosto. – Da primeira vez que a contemplei, pensei que fosse uma deusa descida à terra, a própria Donzela transformada em carne. Seu nascimento era muito acima do meu. Era a filha mais nova de Lorde Leyton Hightower, de Vilavelha. O Touro Branco, que comandava a Guarda Real do senhor seu pai, era tio-avô dela. Os Hightower são uma família antiga, muito rica e muito orgulhosa.
– E leal – Dany completou. – Eu me lembro. Viserys dizia que os Hightower estiveram entre aqueles que permaneceram fiéis ao meu pai.
– É verdade – o cavaleiro admitiu.
– Foram seus pais que arranjaram o casamento?
– Não. Nosso casamento… Essa é uma história longa e aborrecida, Vossa Graça. Não quero incomodá-la com isso.
– Não tenho de ir a nenhum lugar. Por favor – Dany insistiu.
– Às ordens da minha rainha – Sor Jorah franziu a sobrancelha. – Meu lar… precisa compreender isso para entender o resto. A Ilha dos Ursos é bela, mas remota. Imagine velhos carvalhos retorcidos e pinheiros altos, espinheiros em flor, pedras cinzentas recobertas de musgo, pequenos riachos correndo, gelados, por vertentes íngremes. O salão dos Mormont é feito de enormes toras, rodeado por uma paliçada de terra. Fora alguns arrendatários, minha gente vive ao longo da costa e pesca no mar. A ilha fica muito ao norte, e nossos invernos são mais terríveis do que você possa imaginar, Khaleesi. Apesar disso, a ilha servia-me bem, e nunca me faltaram mulheres. Tive a minha cota de mulheres de pescadores e de filhas de arrendatários, antes e depois de casado. Casei-me novo, com uma noiva escolhida por meu pai, uma Glover de Bosque Profundo. Ficamos casados durante dez anos, ou tão perto disso que não faz diferença. Ela era uma mulher de rosto comum, mas não desagradável. Creio que acabei amando-a depois de um tempo, embora nossas relações fossem mais respeitosas do que apaixonadas. Abortou três vezes ao tentar me dar um herdeiro. Da última vez não chegou a se recuperar. Morreu não muito tempo depois.
Dany pousou sua mão na dele e a apertou.
– Lamento por você, de verdade.
Sor Jorah fez um aceno com a cabeça.
– A essa altura, meu pai tinha vestido o negro, então eu era o legítimo Senhor da Ilha dos Ursos. Não me faltaram ofertas de casamento, mas, antes de chegar a me decidir, Lorde Balon Greyjoy rebelou-se contra o Usurpador, e Ned Stark convocou seus vassalos para ajudar o amigo Robert. A batalha final ocorreu em Pyke. Quando as catapultas de Robert abriram uma brecha na muralha do Rei Balon, um sacerdote de Myr foi o primeiro homem a entrar, mas eu não estava muito atrás. E por isso fui armado cavaleiro. Para celebrar sua vitória, Robert ordenou que se realizasse um torneio fora das muralhas de Lanisporto. Foi aí que vi Lynesse, uma donzela com metade da minha idade. Ela tinha vindo de Vilavelha com o pai, a fim de ver as justas dos irmãos. Eu não conseguia tirar os olhos dela. Num ataque de loucura, supliquei seu distintivo para usar no torneio, sem sonhar que atenderia ao meu pedido, mas ela atendeu. Luto tão bem como qualquer outro, Khaleesi, mas nunca fui um cavaleiro de torneios. No entanto, com o distintivo de Lynesse atado em volta do braço, fui um homem diferente. Ganhei justa atrás de justa. Lorde Jason Mallister caiu perante mim, assim como Bronze Yohn Royce. Sor Ryman Frey, o irmão, Sor Hosteen, Lorde Whent, o Javali Forte, até Sor Boros Blount, da Guarda Real. Derrubei todos do cavalo. No último desafio, quebrei nove lanças contra Jaime Lannister sem resultado, e o Rei Robert deu-me os louros de vencedor. Coroei Lynesse Rainha do Amor e da Beleza, e nessa mesma noite fui falar com seu pai e pedi a sua mão. Estava bêbado, tanto de glória como de vinho. Pelo direito, devia ter obtido uma recusa desdenhosa, mas Lorde Leyton aceitou minha proposta. Casamo-nos lá, em Lanisporto, e durante uma quinzena fui o homem mais feliz do mundo inteiro.
– Só uma quinzena? – Dany perguntou. Até a mim foi dada mais felicidade do que isso, com Drogo, meu sol-e-estrelas.
– Uma quinzena foi o tempo que levamos para velejar de Lanisporto à Ilha dos Ursos. Meu lar foi uma grande decepção para Lynesse. Era frio demais, úmido demais, longe demais, com um castelo que nada mais era do que um salão de madeira. Não tínhamos bailes de máscaras, nem de pantominas, nem bailes, nem feiras. Estações inteiras podiam passar sem que um cantor viesse tocar para nós, e não há na ilha um ourives. Até as refeições foram julgadas. Meu cozinheiro pouco sabia além dos seus assados e guisados, e Lynesse perdeu rapidamente o gosto por peixe e carne de veado. Eu vivia para os seus sorrisos, por isso mandei buscar um novo cozinheiro em Vilavelha, e trouxe um harpista de Lanisporto. Ourives, joalheiros, modistas, tudo o que ela queria eu encontrei, mas nunca era suficiente. A Ilha dos Ursos é rica em ursos e árvores, mas pobre em tudo o mais. Construí um belo navio para ela, e viajamos a Lanisporto e Vilavelha para festivais e feiras, e uma vez até fomos a Braavos, onde recebi um grande empréstimo dos agiotas. Tinha sido como campeão de torneio que conquistara sua mão e seu coração, então, por ela participei de outros torneios, mas a magia tinha desaparecido. Não voltei a me destacar, e cada derrota significava a perda de mais um cavalo e de outra armadura para justas, que tinham de ser resgatados ou substituídos. Não podia arcar com os custos. Por fim, insisti que voltássemos para casa, mas aí as coisas ficaram ainda piores do que antes. Já não podia pagar ao cozinheiro e ao harpista, e Lynesse ficou furiosa quando falei em empenhar suas joias. O resto… Fiz coisas que me envergonho de contar. Por ouro. Para que Lynesse pudesse conservar suas joias, seu harpista e seu cozinheiro. No fim, custou-me tudo. Quando ouvi dizer que Eddard Stark se dirigia à Ilha dos Ursos, estava tão desprovido de honra que, em vez de ficar e enfrentar seu julgamento, trouxe-a comigo para o exílio. Nada importava a não ser o nosso amor, disse eu a mim mesmo. Fugimos para Lys, onde vendi o navio em troca de ouro para nos manter.