Antes que tivessem tempo para contestá-la, o som chegou até eles, estremecendo na noite… Mas dessa vez não era lobo nenhum, mas Kurz, que soprava seu berrante, avisando do perigo. Num instante, todos foram se vestir e pegar todas as armas que possuíam. Arya correu para o portão enquanto o berrante voltava a soar. Quando passou em disparada pelo celeiro, Dentadas atirou-se furiosamente contra as correntes, e Jaqen H’ghar chamou do fundo da sua carroça:
– Rapaz! Querido rapaz! É a guerra, a guerra vermelha? Rapaz, liberte-nos. Um homem pode lutar. Rapaz!
Ela o ignorou, e continuou a correr, já ouvindo cavalos e gritos do outro lado da muralha. Subiu para a passarela. A balaustrada era um pouco alta demais e Arya, um tanto baixa demais, teve de enfiar os pés nos espaços entre as pedras para conseguir ver. Por um momento, pensou que a vila estivesse cheia de vaga-lumes. Mas então compreendeu que eram homens com tochas, galopando entre as casas. Viu um telhado incendiar-se, com chamas lambendo a barriga da noite, com quentes línguas cor de laranja quando o sapé pegou fogo. Seguiu-se um outro, e depois outro, e em breve havia fogos ardendo em toda parte.
Gendry subiu a seu lado, com o elmo posto.
– Quantos são?
Arya tentou contar, mas cavalgavam depressa demais, com as tochas rodopiando pelo ar quando as atiravam.
– Cem. Duzentos, não sei – sobre o rugido das chamas conseguia ouvir gritos. – Em breve virão atrás de nós.
– Ali – Gendry apontou.
Uma coluna de cavaleiros movia-se por entre os edifícios em chamas, na direção do castro. A luz do fogo relampejava nos elmos de metal e salpicava as cotas de malha e as armaduras com pontos brilhantes laranjas e amarelos. Um deles transportava um estandarte numa grande lança. Arya achou que fosse vermelho, mas era difícil ter certeza durante a noite, com os incêndios rugindo ao seu redor. Tudo parecia vermelho, negro ou laranja.
O fogo saltava de uma casa para a seguinte. Arya viu uma árvore ardendo, com as chamas rastejando pelos seus galhos até se erguer na noite vestida com uma túnica de um laranja vivo. Agora, todos estavam acordados, guarnecendo as passarelas ou lutando com os animais assustados lá embaixo. Conseguia ouvir Yoren gritando ordens. Algo esbarrou em sua perna e, ao olhar para baixo, descobriu a menina chorona agarrada a ela.
– Vá embora! – Arya livrou a perna. – O que está fazendo aqui em cima? Corra e se esconda em qualquer lugar, sua imbecil – empurrou a menina para longe.
Os cavaleiros refrearam os animais perante os portões.
– Vocês, no castro! – gritou um cavaleiro com um elmo alto encimado por um espigão. – Abram, em nome do rei!
– Bem, e que rei é esse? – berrou de volta o velho Reysen antes que Woth conseguisse lhe dar uma pancada para calá-lo.
Yoren subiu à ameia junto ao portão, com o desbotado manto negro atado a uma vara de madeira.
– Vocês, parem aí! – gritou. – O povo da vila foi embora.
– E você quem é, velho? Um dos covardes de Lorde Beric? – gritou o cavaleiro com o elmo de espigão. – Se aquele gordo idiota do Thoros estiver aí, pergunte-lhe se gosta desses fogos.
– Não tenho nenhum Thoros aqui – gritou Yoren de volta. – Só uns moços para a Patrulha. Não participo da sua guerra – ergueu a vara, para que os outros vissem a cor do seu manto. – Olhe. Isto é negro, da Patrulha da Noite.
– Ou o negro da Casa Dondarrion – gritou o homem que transportava o estandarte inimigo. Arya via agora mais claramente suas cores à luz da vila que ardia: um leão dourado sobre vermelho. – O brasão de Lorde Beric é um relâmpago roxo em fundo negro.
De repente, Arya recordou-se da manhã em que atirou uma laranja na cara de Sansa e a irmã ficou com o estúpido vestido cor de marfim cheio de sumo. Havia no torneio um fidalgo qualquer do Sul, e a amiga tonta de Sansa, Jeyne, estava apaixonada por ele. Tinha um relâmpago no escudo, e seu pai enviara-o em busca do irmão do Cão de Caça para decapitá-lo. Aquilo agora parecia ter acontecido há mil anos, algo que acontecera a uma pessoa diferente, numa vida diferente… a Arya Stark, a filha da Mão, não a Arry, o garoto órfão. Como Arry conheceria os senhores e coisas como essas?
– Está cego, homem? – Yoren sacudiu sua vara de um lado para o outro, fazendo o manto ondular. – Vê algum maldito relâmpago?
– De noite todos os estandartes parecem negros – observou o cavaleiro do elmo de espigão. – Abra, ou serão considerados foras da lei aliados aos inimigos do rei.
Yoren cuspiu.
– Quem está no comando?
– Sou eu – os reflexos de casas ardendo cintilaram, embaçados, na armadura do cavalo de guerra do homem, quando os outros se afastaram para deixá-lo passar. Era um homem robusto, com uma manticora no escudo e arabescos ornamentais rastejando na placa de peito de aço. Através do visor aberto do elmo, uma cara pálida e porcina espreitou para cima. – Sor Amory Lorch, vassalo de Lorde Tywin Lannister, de Rochedo Casterly, Mão do Rei. Do rei verdadeiro, Joffrey – tinha uma voz aguda e fraca. – Em seu nome, ordeno-lhe que abra esses portões.
Em toda a volta dos homens, a vila ardia. O ar da noite estava cheio de fumaça, e havia fagulhas vermelhas em maior número do que as estrelas. Yoren fechou a cara.
– Não vejo necessidade. Faça o que quiser da vila, não significa nada para mim, mas deixe-nos em paz. Não somos seus adversários.
Olha com os olhos, Arya quis gritar ao homem lá embaixo.
– Mas eles não veem que não somos senhores nem cavaleiros? – ela sussurrou.
– Não acho que se importem, Arry – Gendry sussurrou em resposta.
Ela olhou para Sor Amory, da maneira como Syrio a ensinara a olhar, e viu que Touro tinha razão.
– Se não são traidores, abram os portões – gritou Sor Amory. – Vamos nos certificar de que estão dizendo a verdade e seguiremos caminho.
Yoren estava mastigando folhamarga.
– Já disse, não há ninguém aqui além de nós. Dou a minha palavra.
O cavaleiro com o elmo de espigão riu:
– O corvo nos dá a sua palavra.
– Está perdido, velho? – zombou um dos lanceiros. – A Muralha fica muito longe, a Norte daqui.
– Ordeno-lhe uma vez mais, em nome do Rei Joffrey, que prove a lealdade que alega e que abra esses portões – gritou Sor Amory.
Por um longo momento Yoren refletiu, mastigando. Então, cuspiu.
– Acho que não.
– Assim seja. Desafiam as ordens do rei, e assim proclamam-se rebeldes, com ou sem mantos negros.
– Tenho garotos novos aqui dentro – gritou Yoren.
– Garotos novos e homens velhos morrem da mesma forma.
Sor Amory ergueu um punho frouxo e uma lança voou das sombras brilhantes de fogo atrás dele. Yoren devia ser o alvo, mas foi Woth, a seu lado, quem foi atingido. A ponta da lança penetrou na sua garganta e explodiu na parte de trás do pescoço, escura e úmida. Woth agarrou o cabo e caiu, sem forças, da passarela.
– Assaltem as muralhas e matem todos – ordenou Sor Amory numa voz entediada. Mais lanças voaram. Arya puxou Torta Quente para baixo pela parte de trás da túnica. De fora veio o clangor das armaduras, o roçar de espadas em bainhas, o bater de lanças em escudos, misturados com xingamentos e o ruído dos cascos de cavalos a galope. Um archote voou, rodopiando, por cima das suas cabeças, arrastando dedos de fogo enquanto atingia a terra do pátio.
– Lâminas! – Yoren gritou. – Espalhem-se, defendam a muralha onde quer que eles ataquem. Koss, Urreg, guardem a porta traseira. Lommy, arranque aquela lança de Woth e suba para o lugar onde ele estava.
Torta Quente deixou cair sua espada curta quando tentou desembainhá-la. Arya tentou enfiar a espada de volta na sua mão.