Era o costume da guerra. O povo era massacrado e os nobres, aprisionados, para obter resgates. Lembre-me de agradecer aos deuses por ter nascido um Lannister.
Sor Cleos passou uma mão pelo fino cabelo castanho:
– Mesmo com uma bandeira de paz, fomos atacados duas vezes. Lobos em cota de malha, famintos por morder qualquer um mais fraco que eles. Só os deuses sabem de que lado começaram, mas agora estão do seu próprio lado. Perdemos três homens, e temos muitos mais feridos.
– Que novidades há do nosso inimigo? – Tyrion volveu a atenção às condições do Stark. O rapaz não quer muito. Só metade do reino, a libertação dos nossos cativos, reféns, a espada do pai… ah, sim, e as irmãs.
– O rapaz está em Correrrio sem fazer nada – Sor Cleos respondeu. – Creio que teme enfrentar seu pai no campo de batalha. Sua força diminui todos os dias. Os senhores do rio partiram, cada um para defender suas próprias terras.
Seria isto o que meu pai pretendia? Tyrion enrolou o mapa de Stark.
– Estas condições nunca serão aceitas.
– Consentirá pelo menos em trocar as garotas Stark por Tion e Willem? – Sor Cleos perguntou em tom de lamento.
Tyrion recordou que Tion Frey era seu irmão mais novo.
– Não – Tyrion respondeu gentilmente –, mas proporemos nossa própria troca de cativos. Deixe-me consultar Cersei e o conselho. Enviaremos você de volta a Correrrio com as nossas condições.
Era claro que a perspectiva não o alegrava.
– Senhor, não creio que Robb Stark ceda com facilidade. É a Senhora Catelyn quem quer esta paz, não ele.
– A Senhora Catelyn quer as filhas – Tyrion desceu do banco, com a carta e o mapa na mão. – Sor Jacelyn tratará de providenciar comida e fogo para você. Parece-me terrivelmente que precisa dormir, primo. Mandarei chamá-lo quando soubermos mais.
Tyrion foi encontrar Sor Jacelyn nas ameias, observando várias centenas de novos recrutas que treinavam no campo abaixo. Com tanta gente procurando refúgio em Porto Real, não havia falta de homens com vontade de se juntar à Patrulha da Cidade em troca de uma barriga cheia e uma cama de palha na caserna, mas Tyrion não tinha ilusões quanto à forma como aqueles defensores esfarrapados lutariam se chegasse a haver uma batalha.
– Fez bem em mandar me chamar – disse Tyrion. – Deixarei Sor Cleos nas suas mãos. Ele deverá receber toda a hospitalidade.
– E a escolta? – quis saber o comandante.
– Dê-lhes comida e trajes limpos e arranje um meistre para tratar dos seus ferimentos. Eles não deverão pôr os pés dentro da cidade, entendido? – não seria nada bom deixar que a verdade sobre as condições existentes em Porto Real chegasse a Robb Stark, em Correrrio.
– Está bem entendido, senhor.
– Ah, e mais uma coisa. Os alquimistas irão enviar um grande abastecimento de frascos de argila para todos os portões da cidade. Use-os para treinar os homens que irão manobrar as suas catapultas de fogo. Encha os frascos com tinta verde e treine-os a carregar as armas e disparar. Qualquer homem que provocar respingos deverá ser substituído. Quando tiverem dominado os frascos de tinta, substitua-a por azeite de lâmpada e ponha-os a trabalhar na ignição dos frascos e no seu disparo em chamas. Uma vez tendo aprendido a fazer isso sem se queimar, estarão preparados para o fogovivo.
Sor Jacelyn coçou o queixo com a mão de ferro.
– Medidas sensatas. Embora eu não sinta nenhuma afeição por aquele mijo de alquimista.
– Nem eu, mas uso o que me é dado.
De volta à liteira, Tyrion Lannister fechou as cortinas e apoiou-se com o cotovelo numa almofada. Cersei ficaria descontente por saber que ele interceptara a carta de Stark, mas seu pai o mandara ali para governar, não para contentar Cersei.
Parecia-lhe que Robb Stark lhes dera uma oportunidade de ouro. Que o rapaz ficasse em Correrrio sonhando com uma paz fácil. Tyrion responderia nos seus próprios termos, dando ao Rei do Norte apenas o bastante do que queria para mantê-lo esperançoso. Que Sor Cleos desgastasse seu ossudo traseiro de Frey cavalgando para lá e para cá com ofertas e contraofertas. Enquanto isso, seu primo Sor Stafford treinaria e armaria a nova tropa que tinha recrutado em Rochedo Casterly. Quando estivesse pronta, ele e Lorde Tywin poderiam esmagar os Tully e os Stark entre ambos.
Se ao menos os irmãos de Robert fossem tão amáveis. Por mais glacial que fosse sua progressão, Renly Baratheon continuava se arrastando para o norte e para o leste com sua enorme tropa do sul, e quase não se passava uma noite sem que Tyrion temesse ser acordado com a notícia de que Lorde Stannis subia a Torrente da Água Negra com a sua frota. Bem, ao que parece tenho uma considerável reserva de fogovivo, mas, mesmo assim…
O som de um tumulto qualquer na rua intrometeu-se nas suas preocupações. Tyrion espiou cautelosamente por entre as cortinas da liteira. Passavam pela Praça dos Sapateiros, onde uma multidão de bom tamanho se reunira por baixo dos toldos de couro para assistir às arengas de um profeta. Uma toga de lã não tingida, cintada por uma corda de cânhamo, identificava-o como um dos irmãos mendicantes.
– Corrupção! – o homem gritou estridentemente. – Ali está o aviso! Admirem o flagelo do Pai! – apontou para a esfiapada ferida vermelha no céu. De onde estava, o castelo distante na Colina de Aegon ficava diretamente por trás dele, com o cometa agourentamente pendurado por cima das suas torres. Uma escolha de palco inteligente, refletiu Tyrion. – Tornamo-nos inchados, intumecidos, impuros. Irmão copula com irmã na cama de reis, e o fruto do seu incesto faz piruetas no seu palácio ao som da flauta de um retorcido macaquinho demoníaco. Senhoras de alto nascimento fornicam com bobos e dão à luz monstros! Até o Alto Septão esqueceu os deuses! Banha-se em águas perfumadas e engorda com cotovias e lampreias, enquanto seu povo passa fome! O orgulho vem antes da oração, vermes governam nossos castelos, e o ouro é tudo… Mas basta! O verão putrefato chegou ao fim, e o Rei Devasso foi derrubado! Quando o javali o abriu, um grande fedor subiu ao céu, e mil serpentes deslizaram da sua barriga, silvando e mordendo! – ele voltou a balançar o dedo ossudo na direção do cometa e do castelo. – Ali vem o Mensageiro! Purifiquem-se a si mesmos, gritam os deuses, para que não tenham de ser purificados! Banhem-se no vinho da probidade, ou serão banhados em fogo! Fogo!
– Fogo! – repetiram outras vozes num eco, mas os gritos de zombaria quase os afogaram.
Tyrion retirou daquilo consolação. Deu ordem para prosseguir, e a liteira balançou como um navio em mar revolto, enquanto os Homens Queimados abriam caminho. Retorcido macaquinho demoníaco, certo. Mas o desgraçado tinha realmente alguma razão no que dizia do Alto Septão. O que foi que o Rapaz Lua tinha dito dele no outro dia? Um homem devoto que adora tão fervorosamente os Sete que come uma refeição por cada um sempre que se senta à mesa. A memória da piada do bobo fez Tyrion sorrir.
Ficou contente por chegar à Fortaleza Vermelha sem mais incidentes. Enquanto subia os degraus que levavam aos seus aposentos, Tyrion sentia-se um pouco mais esperançoso do que de madrugada. Tempo. É tudo aquilo de que realmente preciso, tempo para juntar as peças. Assim que a corrente estiver pronta… Abriu a porta do seu aposento privado.
Cersei virou as costas para a janela, fazendo rodopiar as saias em torno das suas ancas esguias.
– Como se atreve a ignorar minhas convocatórias?