– Já comeu o seu – Jon lembrou-lhe.
– Craster é tão selvagem como os patrulheiros dizem? – Sam quis saber. O coelho estava um pouco malpassado, mas tinha um gosto maravilhoso. – Como é o castelo dele?
– Um monte de estrume com um telhado e um buraco para a fumaça sair – Jon contou a Sam o que tinha visto e ouvido na Fortaleza de Craster.
Quando terminou a história, lá fora estava escuro e Sam lambia os dedos.
– Isso estava gostoso, mas agora tenho vontade de uma perna de carneiro. Uma perna inteira, só para mim, com molho de menta, mel e cravo. Viu carneiros?
– Havia um curral, mas sem ovelhas.
– Como é que ele alimenta todos os seus homens?
– Não vi homem nenhum. Só Craster, suas mulheres e algumas meninas pequenas. Espanta-me que ele seja capaz de manter o lugar. As defesas não são nada que valha a pena mencionar, só um dique lamacento. É melhor que vá até a casa e desenhe o mapa. Consegue encontrar o caminho?
– Se não cair na lama...
Sam voltou a calçar as botas com dificuldade e, munido de pena e pergaminho, penetrou na noite, com a chuva tamborilando no seu manto e no chapéu mole.
Fantasma apoiou a cabeça nas patas e adormeceu junto à fogueira. Jon estendeu-se a seu lado, grato pelo calor. Sentia-se frio e molhado, mas não tão frio nem tão molhado como se sentira pouco tempo antes. Talvez esta noite o Velho Urso fique sabendo de alguma coisa que nos leve ao Tio Benjen.
A primeira coisa que viu quando acordou foi sua respiração formando névoa no ar frio da manhã. Quando se moveu, seus ossos doeram. Fantasma tinha desaparecido e a fogueira apagara-se. Jon estendeu o braço para afastar o manto que tinha pendurado no rochedo, e o sentiu rígido e congelado. Rastejou por baixo dele e ficou em pé numa floresta transformada em cristal.
A pálida luz rosada da alvorada cintilava em galhos, folhas e pedras. Cada folha de mato estava esculpida em esmeralda, cada gota d’água tinha se transformado em diamante. Tanto as flores como os cogumelos usavam casacos de vidro. Mesmo as poças de lama tinham um brilhante reflexo marrom. Por entre o verde cintilante, as tendas negras dos seus irmãos estavam revestidas por um fino esmalte de gelo.
No fim das contas, há magia para lá da Muralha. Deu por si pensando nas irmãs, talvez porque tivesse sonhado com elas na noite anterior. Sansa chamaria aquilo de um encantamento, e lágrimas encheriam seus olhos perante aquela maravilha, mas Arya correria aos risos e aos gritos, querendo tocar em tudo.
– Lorde Snow? – Jon ouviu uma voz chamar, suave e submissa, e se virou.
A guardadora de coelhos estava acocorada no topo do rochedo que o abrigara durante a noite, enrolada num manto negro tão grande que a submergia. O manto de Sam, Jon percebeu de imediato. Por que ela o está usando?
– O gordo disse-me que o encontraria aqui, senhor.
– Comemos o coelho, se é isso que veio procurar – admitir aquilo fez Jon sentir-se absurdamente culpado.
– O velho Lorde Corvo, aquele que tem o pássaro falante, deu a Craster uma besta que vale cem coelhos – os braços da menina se cruzaram sobre a barriga inchada. – É verdade, senhor? É irmão de um rei?
– Meio-irmão – Jon admitiu. – Sou bastardo de Ned Stark. Meu irmão Robb é Rei do Norte. Por que está aqui?
– O gordo, o tal do Sam, disse para vir falar com o senhor. Deu-me este manto, para que ninguém dissesse que não pertenço a este lugar.
– Craster não vai ficar zangado com você?
– Meu pai bebeu demais do vinho do Lorde Corvo na noite passada. Vai passar a maior parte do dia dormindo – a respiração dela congelava no ar em pequenas nuvens nervosas. – Dizem que o rei faz justiça e protege os fracos – ela começou a descer o rochedo, desajeitadamente, mas o gelo tornara-o escorregadio e seu pé deslizou. Jon apanhou-a antes que caísse e a ajudou a descer o resto em segurança. A mulher ajoelhou no chão gelado. – Senhor, suplico-lhe…
– Não me suplique nada. Volte para sua casa, não devia estar aqui. Foi-nos ordenado que não falássemos com as mulheres de Craster.
– Não tem de falar comigo, senhor. Só me leve com você quando partir, é tudo o que peço.
Tudo o que ela pede, Jon pensou. Como se não fosse nada.
– Eu… eu serei sua mulher, se quiser. Meu pai agora tem dezenove, uma a menos não lhe fará falta.
– Os irmãos negros juram nunca tomar esposas, não sabia? E, além disso, somos hóspedes na casa do seu pai.
– O senhor não – ela disse. – Eu vi. Não comeu à mesa dele nem dormiu junto à sua fogueira. Ele nunca lhe ofereceu direito de hóspede, por isso não tem obrigações perante ele. É pelo bebê que tenho de partir.
– Nem sequer sei o seu nome.
– Ele chamou-me de Goiva. Vem da flor de goivo.
– É bonito – Jon se lembrou de Sansa, quando lhe disse, um dia, que devia dizer aquilo sempre que uma senhora revelasse seu nome. Não podia ajudar a moça, mas talvez a cortesia lhe agradasse. – É Craster quem a assusta, Goiva?
– É pelo bebê, não por mim. Se for uma menina não é muito ruim, crescerá durante alguns anos e depois ele casa com ela. Mas Nella diz que vai ser um menino, e ela teve seis, e sabe dessas coisas. Ele dá os garotos aos deuses. Quando chega o frio branco, faz isso, e nos últimos tempos tem chegado mais vezes. Foi por isso que começou a dar-lhes ovelhas, apesar de gostar de carne de carneiro. Só que agora já não há ovelhas. A seguir vão ser os cães, até… – abaixou os olhos e afagou a barriga.
– Que deuses? – Jon estava se lembrando que não tinham visto meninos na Fortaleza de Craster e também nenhum homem além do próprio Craster.
– Os deuses frios – ela respondeu. – Os da noite. As sombras brancas.
De repente, Jon imaginou-se de volta à Torre do Senhor Comandante. Uma mão cortada subia pela barriga da sua perna e, quando a afastou com a ponta da espada, ela ficou se contorcendo, com os dedos abrindo e fechando. O homem morto levantou-se, com os olhos azuis brilhando naquela cara talhada e inchada. Cordões de carne rasgada pendiam do grande ferimento que tinha na barriga, mas não havia sangue.
– De que cor são os seus olhos? – Jon perguntou à menina.
– Azuis. Brilhantes como estrelas azuis, e tão frios como elas.
Ela os viu, pensou. Craster mentiu.
– Vai me levar? Só até a Muralha…
– Não nos dirigimos para a Muralha. Vamos para o norte, atrás de Mance Rayder e desses Outros, dessas sombras brancas e das suas criaturas. Nós os estamos procurando, Goiva. Seu bebê não estaria a salvo conosco.
O medo dela era claro em seu rosto.
– Mas voltará. Quando a luta terminar, voltará a passar por aqui.
– Talvez – se algum de nós sobreviver. – Isso cabe ao Velho Urso decidir, aquele a quem chama de Lorde Corvo. Sou só seu escudeiro. Não escolho o caminho a seguir.
– Não – Jon conseguia ouvir a derrota na voz dela. – Desculpe por tê-lo incomodado, senhor. Eu só… dizem que o rei mantém as pessoas a salvo, e pensei… – desesperada, fugiu, com o manto de Sam pairando atrás dela como grandes asas negras.
Jon ficou vendo a menina partir, desaparecida sua alegria com a beleza quebradiça da manhã. Maldita seja, pensou, ressentido, e duplamente maldito seja Sam por mandá-la falar comigo. O que será que pensou que eu poderia fazer por ela? Estamos aqui para lutar contra selvagens, não para salvá-los.
Outros homens engatinhavam para fora dos seus abrigos, bocejando e espreguiçando-se. A magia já tinha se desvanecido, com o brilho do gelo transformado em orvalho comum à luz do sol nascente. Alguém tinha acendido uma fogueira; conseguia sentir o cheiro de fumaça que pairava entre as árvores e o odor defumado de toucinho. Jon desprendeu o manto e bateu com ele na rocha, despedaçando a fina crosta de gelo que se formara durante a noite. Depois, pegou Garralonga e enfiou um braço em uma correia de ombro. A alguns metros dali, urinou contra um arbusto gelado, com a urina fumegando no ar frio e derretendo o gelo onde caía. Depois, amarrou os calções de lã negra e seguiu os cheiros.