Foi, aliás, depois de uma dessas teimosias que acabaram acidentalmente por passar pela galeria Kahnweilec, na Rue Vignon, onde Agnès conheceu o cubismo quando era estudante. A galeria estava fechada e um vizinho informou-a, com evidente satisfação, de que herr Kahnweiler se tinha exilado logo que a guerra começara.
“O boche meteu o rabo entre as pernas e foi-se embora, le salaud”, exclamou o vizinho, um velho magro e ossudo. “Devia ter culpas no cartório e é certamente por isso que a loja está sequestrada pelas autoridades”
O encontro de Afonso com a grande arte não se produziu assim na singela galeria Kahnweiler, e tentaram então o imponente Museu do Louvre. Mas o enorme palácio encontrava-se igualmente encerrado, as obras de arte tinham sido retiradas para Toulouse logo que a guerra começara, para desgosto de Agnès, que não se conformava com a má sorte.
“É uma pena”, lamentou-se, abanando a cabeça. “Queria tanto mostrar-te as grandes obras, a Vénus de Milo, o Gladiador Borghèse, o Código de Hammurabi “
“Deixa lá, fica para a próxima. “
“O Código de Hammurabi é muito importante”, insistiu ela. “Serge, que tirou Direito, explicou-me que o Código é a primeira tábua de leis conhecida, regulou a justiça da Babilónia há quase quatro mil anos. Ele foi precedido pelos Códigos de Ur e pelo Código do rei Ishtar, da Suméria e Acádia, mas é o de Hammurabi a única tábua de leis que sobreviveu intacta ao tempo. O Código estabelece umas trezentas leis e está redigido em caracteres cuneiformes cravados numa estela de diorite, uma espécie de pedra escura que foi trazida aqui para o Louvre. É um pouco como a pedra de Rosetta, dos egípcios, que se encontra em Londres. O Código de Hammurabi é algo realmente impressio-nante, único, extraordinário, é mesmo lamentável que não o possamos ver. “ 310
“O que eu queria mesmo era ter a Gioconda à frente “ “Oh, isso tem mais fama do que proveito”, atalhou Agnès com uma careta de desprezo, decepcio-nada com a atenção desproporcionada que todos teimavam em dar à minúscula pintura de Da Vinci. “A Gioconda é uma coisa pequenininha, insignificante, ridícula até. Não se compara, em importância, ao Código de Hammurabi, acredita em mim. Mas, sabes, no meu tempo de estudante aconteceu uma coisa engraçada“ Sorriu. “A Gioconda foi roubada. Foi um grande escândalo na época, com os jornais cheios de acusações de negligência e de incompetência. Demoraram dois anos a localizá-la, tinha sido furtada por um italiano, que levou a pintura para Itália. Quando o quadro voltou para o Louvre, foi montado um enorme dispositivo policial para o proteger, até parecia que a Gioconda era a rainha de Inglaterra “
A vida nocturna de Paris revelou-se surpreendente, sobretudo porque permanecia tão activa em tempo de guerra. Passaram uma noite no Moulin Rouge e foram dar um pé-de-dança ao animado Moulin de la Galette. Afonso derreteu aqui uma parte significativa do seu pé-de-meia, mas não se importou, ganhava 478 francos por mês e raramente os gastava, as trincheiras faziam pouco apelo ao consumo, de modo que ao longo dos meses foi acumulando os salários. A verdade é que a experiência da guerra relativizara-lhe a importância do dinheiro, encarava agora todos aqueles francos como apenas um meio para viver o presente, saborear o momento, fruir a vida e esquecer tudo o resto.
Foi por isso que, na penúltima noite, a do reveillon, decidiu proporcionar a Agnès uma inesquecível festa de passagem do ano. Levou-a às Folies-Bergère, cuja cabeça de cartaz era um espectáculo com duas das grandes estrelas francesas do momento, a bela Mistinguett e o charmoso Maurice Chevalier.
“Chama-se Chevalier mas não é da família”, esclareceu Agnès com uma gargalhada, durante o intervalo. “Nós somos Chevallier com dois eles, ele é Chevalier com apenas um ele “
A principal canção do espectáculo era Pas pour moi, que cantaram novamente quando soou a meia-noite. Brindaram a chegada de 1918 com champagne e fizeram juras de amor eterno num longo abraço de ano novo. Após o reveillon, e já terminado o espectáculo e a festa, Agnès saiu das Folies-Bergère agarrada ao braço de Afonso e a trautear a melodia popularizada por Mistinguett e Chevalier: a des gens veinards
Qui mang'nt des
huitrs et des z'homards
Des pâtés d'joi'
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C'est pas pour moi.
Paris permitiu-lhes conhecerem-se melhor. Deram longos passeios pelas margens do Sena, pelas Tulherias e pelos Champs-Elysées, sempre de mão dada e a desafiarem o frio, e no quarto do Savoie aprofundaram a sua intimidade e aprenderam as manhas de cada um, ela cheia de graça feminina, ele repleto de vigor masculino. Para Agnès, Afonso representava um tipo de companheiro que ia de encontro às suas necessidades. Era sensível, atencioso, compreensivo, preocupado com os pequenos pormenores.
Detalhe importante, revelou-se o único homem que ela conhecera que tinha paciência em acompanhá-la nas compras, mostrou mesmo algum prazer quando Agnès o arrastou para as Galeries Lafayette e ali gastou uma tarde inteira.
“Por que não experimentas este?“, perguntou-lhe ele, exibindo um vestido ostentado por um manequim.
Agnès observou o traje, era um vestido creme, longo e apertado nas ancas, com uma saia sobre a saia principal, uma espécie de túnica que ficava abaixo do joelho. Em vez das habituais golas altas, porém, tinha o pescoço aberto em V, pormenor que de imediato chamou a atenção da francesa.
“Oh la la, vais ser excomungado”, comentou ela com um sorriso malicioso.
“Eu? Porquê? “
“Não te faças sonso, meu maroto”, riu-se. “Então não vês que o vestido se abre à frente, por baixo do pescoço? “
Afonso observou com atenção.
“Ah, pois é!“, exclamou. Olhou para ela. “Então é melhor não o compra-res, é um bocado atrevido “
“Oh, isto para nós já não é nada de especial. Mas, há uns três anos, a Igreja denunciou estes vestidos por serem escandalosos e indecentes e até houve médicos que disseram que eles constituíam uma ameaça à saúde pública, vê lá tu.“
“Pois, pois”, assentiu Afonso. Virou-se imediatamente para outro vestido, mais conservador, procurando desinteressá-la do anterior. “Olha, este também é bonito. “ Para além de a ajudar a escolher as roupas, os chapéus e os sapatos, dando opiniões e resistindo estoicamente às suas indecisões, Afonso chegou até a arrastá-la para outras áreas das galerias que nunca visitara com atenção. O português sentia-se fascinado com aquele gigantesco estabelecimento, nunca vira coisa igual. Aproveitou para adquirir novidades para si próprio, comprou produtos de uso corrente, como uma lata de Crème Eclipse para polir botas, o creme Dianoir para sapatos e um sabão de barbear Erasmic. Além disso, presen-teou Agnès com o último grito da moda parisiense, o badalado Chypre, miracu-loso 312
perfume acabado de colocar no mercado e que levava milhares de france-sas à loucura com os seus deliciosos aromas de bergamota, jasmim e musgo de cedro, combinados com um leve tom de feno libertado pela cumarina.
“Estás a insinuar que L'heure bleue não te agrada?“, perguntou a francesa, mirando o delicado frasco de Chypre.
“O que é isso? “
“L'heure bleue é o meu perfume. “
“Oh não, o teu perfume é fantástico”, assegurou-lhe Afonso. Cheirou o frasco que ela segurava nas mãos e cerrou os olhos, deliciado com a fragrância. “Mas deves acompanhar a moda n'est pas? “