Выбрать главу

Foi fora das Galeries Lafayette, todavia, que Afonso efectuou as duas aquisições que o deixaram mais entusiasmado. Uma foi uma grande inovação importada do outro lado do Atlântico, a pasta de dentes Colgates Ribbon Dental Cream, que os dough boys, como eram conhecidos os soldados america-nos, tinham trazido para Paris. Como toda a gente, Afonso estava habituado ao pó para dentes que normalmente comprava em potes de faiança, e achou graça quando descobriu, num quiosque de St. -Germain-des-Prés, a caixa vermelha de papelão a anunciar que o pó dos dentes vinha agora em creme, contido num tubo maleável, as instruções na caixa a mostrarem que bastava dobrar o tubo para a pasta ir saindo.

A outra compra que o empolgou foi a que fez numa pequena loja do Trocadéro. Iam os dois a passar em direcção à Torre Eiffel quando Afonso notou uma pequena máquina fotográfica exposta na montra do estabele-cimento.

“Olha esta câmara”, apontou. “Os bifes têm muitas iguais nas trincheiras.“ Era uma vest Pocket Kodak. Depois de a namorar com os olhos, Afonso entrou na loja e perguntou pelo preço.

“C'est combien?”

“São sessenta e cinco francos, msieur”, disse o comerciante. O vendedor mostrou-lhe como podia prender o estojo da máquina ao cinto, um pormenor de utilidade prática que fez a diferença na decisão de Afonso. Tirou a carteira, contou as notas e entregou-as ao homem. O resto da tarde foi passado em brincadeiras no Champ-de-Mars, ambos divertindo-se como garotos, rolando na relva, correndo por entre os arbustos, rindo e gritando, a minúscula máquina fotográfica a disparar clichet atrás de clichet para registar a felicidade do casal de namorados.

Nem tudo era perfeito, claro. Agnès agastava-se um pouco com a forma como o português punha tudo em pantanas, as roupas sempre desarrumadas no quarto de dormir, 313

negligentemente amontoadas num canto, e o quarto de banho transformado num verdadeiro campo de batalha. Sempre que ia tomar banho, o capitão deixava a banheira repleta de pelos e o soalho inundado de água, era um verdadeiro selvagem. Cantava alto e desafinado na banheira, mas mantinha um desconcertante pudor sempre que ela entrava no quarto de banho. Cobria-se com uma toalha, envergonhado e tímido, o que a fazia rir.

“Olha lá, achas que nunca vi isso, é? “, perguntou-lhe ela certa vez, provocando-o ao entrar no cabinet de toilette para ir buscar uma escova. Divertia-se por vê-lo com tantos pudores. “Ora mostra lá. “

Um rubor embaraçado encheu-lhe a face.

“Oh, não sejas assim”, resmungou Afonso, encolhido na toalha. “Despa-cha-te e deixa-me à vontade, vá. “

“Mon Dieu, uma vez seminarista, sempre seminarista!“, exclamou Agnès, rolando os olhos numa careta trocista. Pegou na escova, deu meia-volta e dirigiu-se à porta para sair.

“Quem te visse nunca diria que és um garanhão na cama.“ Riu-se e espreitou pela frincha antes de fechar a porta. “Até já, forni-cador púdico“

Noutros instantes era ele que a provocava. Evitava as vulgaridades, preferia floreados mais românticos, com um toque platónico e eloquente.

“Mon petit choux”, disse-lhe numa ocasião, preparavam-se para sair. “És uma santa, és bela como uma flor de Primavera. “

Era um piropo banal, um pouco fatela até, mas Agnès sentiu-se agradada.

“Tão querido”, agradeceu com ar meigo, devolvendo-lhe o cumprimento nos termos que sabia serem irresistíveis para o ego de qualquer homem. “Pois tu, mon mignon, o teu maior atributo é essa potência incansável. “ Revirou os olhos e fez um ar cocotte. “Oh la la.“

“Achas?“, questionou ele com falsa modéstia, baixando momentanea-mente os olhos, algo envergonhado.

“Ah oui!“

Sempre que ela o testava, perguntando, por exemplo, se tinha o rabo gordo ou os seios demasiado pequenos, coisas que sabia não serem verdadeiras, ele dava sempre a resposta certa e insistia em que Agnès era linda, perfeita, suprema, única.

Quando se aconchegavam na cama, depois de se saciarem no amor e antes de repousarem no sono, Afonso segredava-lhe palavras doces ao ouvido, enal-tecia-lhe a beleza e a generosidade, soprava-lhe ternuras meigas e acariciava-a com um toque suave.

Abraçados no quarto do Savoie e à sombra da noite, o capitão jurou-lhe que iria fugir das trincheiras só para lhe cantar uma serenata à chuva. Embalava- a num turturilhar de amor 314

com promessas doces e sussurros melosos, dizia-lhe que a amava, que a adorava, que a idolatrava, que ela era a melhor coisa que lhe tinha acontecido, que iriam envelhecer juntos, que Agnès era uma deusa, a mulher dos seus sonhos. Ela era uma rosa, uma jóia, um raio de sol, um aroma florido, uma ária sublime, uma brisa pura da Primavera. A francesa cerrava os olhos e bebia com avidez aquelas palavras encantadas que a faziam sentir-se tão especial, tão única, bebia-as até ficar tonta, até se sentir embriagada de amor e inebriada de paixão, até achar que, na verdade, Afonso não tinha comparação, era o melhor dos homens.

Mas a licença depressa se esgotou no fulgor daquele intenso e inesquecível passeio por Paris, e o momento do regresso aproximou-se, implacável, inexorá-vel, como uma nuvem negra correndo com rápida e traiçoeira lentidão em direcção ao Sol, correndo até o ocultar e sobre os amantes lançar a sua sinistra e triste sombra, arrancando-os da sobressaltada felicidade em que viviam mergu-lhados e arrastando-os penosamente para o pesadelo da assustadora fornalha em que se transformara a Flandres. Agnès e Afonso apanharam o comboio de regresso a Aire-sur-la-Lys como escravos resignados ao seu amaldiçoado desti-no, a sombria nuvem solitária que os perseguia sempre a crescer, a alargar, a encher o horizonte, ameaçadora e sufocante, cinzenta e carregada, até se tornar, perto do indesejado destino, uma vasta e tenebrosa tempestade de guerra.

Afonso não deixava de se sentir surpreendido com a engenhosa capaci-dade de camuflagem da artilharia portuguesa. Os canhões escondiam-se em buracos espalhados pelos campos atrás do seu sector, e a dissimulação era tão eficaz que havia já dois meses que o inimigo não conseguia detectar e atingir uma única peça do CEP Infantaria 8

encontrava-se de apoio à linha das aldeias no sector de Laventie, por detrás de Fauquissart, e o capitão aproveitou a manhã tranquila para ir admirar um canhão Schneider-Canet de 7, 5 centíme-tros que tinha sido ocultado perto do seu posto, atrás da Rue de Paradis. A peça de artilharia permanecia disfarçada dentro de um abrigo a que os soldados chamavam Elefante, um buraco protegido por chapas de ferro onduladas e espessas, de forma cilíndrica, ligadas por cantoneiras e tapadas por terra e vegetação, a boca do buraco parecendo um curto túnel que emergia do solo.

“Macacos me mordam se os boches conseguem topar esta bisarma”, murmurou Afonso para si mesmo, contemplando com admiração aquele trabalho de perfeita camuflagem.

Sentiu passos à direita e viu Joaquim aproximar-se em corrida com uma folha de papel na mão esquerda, a Lee- Enfield a balouçar a tiracolo. O capitão fixou os olhos na folha e reconheceu o Folhetim de Guerra, um impresso que os alemães atiravam 315

regularmente para as linhas portuguesas em tiro de morteiro e que caía do lado de cá em pacotes inseridos nos projécteis que a rapaziada apelidava de ananazes.

“Então, Joaquim?“, saudou Afonso. “Trazes aí o Diário de Noticias de Berlim?“

“Sim, meu capitão”, confirmou a ordenança, ofegante, estendendo o impresso. “Eles atiraram isto esta manhã. “

“Vamos lá ver se é melhor do que o almocreve das petas”, comentou o capitão com ironia, referindo-se à forma como era conhecido o boletim diário das operações emitido pelo CEP. Pegou na folha, o título Folhetim de Guerra bem visível no topo, em baixo todo o texto redigido em português. “Ora deixa cá ver isto. “ 316