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Corria o dia 25 de Janeiro de 1918 e a folha assinalava a data de 30 de Dezembro.
Era antiga, mas trazia novidades. O primeiro título anunciava sensacionalmente que havia uma “demobilização das tropas em Portugal” e que a excepção era apenas das “tropas portuguezas que se acham nos diversos theatros de guerra”. O capitão estudou o estilo de escrita, o que fazia sempre que punha os olhos num exemplar daqueles, e reforçou a sua convicção de que o texto tinha sido redigido por alguém que vivera em Portugal. Ou era um português ou então tratava-se de um alemão que conhecia profundamente a língua portuguesa. O assunto era muito discutido entre os oficiais, divididos entre as duas hipóteses. Afonso achava que se tratava de um compatriota, provavelmente um prisioneiro de guerra, mas também podia ser um monárquico, era conhecida a simpatia que muitos monárquicos nutriam pela Alemanha. Sem chegar a grandes conclusões naquele instante, mas sempre atento aos detalhes que lhe pudessem dar indicações, o capitão passou à segunda notícia, a qual, sob o título de “Portugal e os Alliados”, dava nota da existência de más relações entre o novo governo de Sidónio Paes e os executivos de Londres e Paris, indicando que “a Inglaterra se oppõe com todos os meios á tudo quanto o novo governo resolver”. A suspeita de que o autor do texto era um monárquico português saiu enfraquecida da leitura de outro trecho desta mesma notícia, designadamente a referência à restauração da monarquia, projecto que, segundo a folha alemã, “nem os próprios monarchistas portugue-zes apoiarião, sabendo, como consta, que o jovem rei Dom Manuel se acha completamente nas mãos dos Inglezes e avassallado por elles”. Este ambíguo trecho indiciava que o autor do texto poderia não ser um monárquico. É certo que muitos monárquicos simpatizavam com os alemães e mostravam-se críticos para com o rei no exílio, mas acusá-lo de ser um vassalo dos ingleses parecia ser forte de mais. Ora, se o autor do panfleto não era um monárquico, reflectiu Afonso, então só poderia tratar-se de um prisioneiro, certamente um oficial. Meditou um breve instante sobre o que levaria um militar a trair daquela forma o país e, percebendo que não tinha resposta porque não conhecia as circunstâncias em que o traidor se encontrava, voltou à folha. A terceira notícia, “um successo allemão na África”, referia um combate em Moçambique entre forças alemãs e portuguesas, e a última informação do Folhetim de Guerra era a de que tinham 317
sido presos em Lisboa dois antigos ministros portugueses da Guerra, o general Barreto e o coronel Pereira.
“E esta? “, admirou-se Afonso, depois de soltar um longo assobio logo que leu os nomes. “O Pereira foi de cana. Sim senhor, isto está bonito. “ O capitão deu meia-volta e seguiu em direcção ao posto com o impresso na mão, havia ali suficiente informação para alimentar uma manhã de conversa com o Cenoura ou mesmo com Tim. Ninguém ignorava que aquele era material de propaganda, mas o que é certo é que tais “notícias” tinham geralmente algum fundamento, o problema era analisar os textos e saber interpretá-los, procurar a verdade por detrás da retórica. Todos sabiam que existiam notícias que o CEP jamais deixava transpirar e que a melhor maneira de a elas ter acesso era através daqueles boletins de propaganda inimiga. Entre os militares prevalecia a convicção de que a verdade se situava algures entre as duas versões, a dificuldade era localizá-la com exactidão na imensa distância que separava ambas as propagandas.
Absorto nos seus pensamentos, o oficial nem deu pela chegada do capitão Resende, o lisboeta-que-era-gordo-e-emagreceu, a quem Afonso e Mascarenhas tinham oferecido dois meses antes uma memorável recepção ao caloiro nas trincheiras.
“Ora viva, capitão Brandão”, saudou Resende, muito sorridente, proveniente da direcção de Laventie.
Ah, olá, capitão Resende, devolveu Afonso, como se estivesse a despertar.
“Olá e adeus, digo eu. “
“Ah sim? Então adeus, adeus. “
“Ó homem, quando digo adeus é mesmo adeus. Vou-me embora. “
“Ah é? Para onde? Vai a Paris?”
“Qual Paris, qual carapuça! “, riu-se Resende, realmente bem- disposto. “Vou para Lisboa, caraças, vou para casa. “ Afonso abrandou, admirado com tal revelação.
“ Para casa? Como?”
“De comboio, como é que havia de ser? De comboio, porra. “ “Mas o senhor acabou de chegar! A que propósito é que vai para casa? Que eu saiba, a guerra ainda não acabou. “
“Eu quero lá saber da guerra! Pode não ter acabado para si, capitão Brandão, mas olhe que acabou para mim. Vou-me embora e cago nesta merda toda! “ Afonso estacou, ainda indeciso quanto ao significado daquelas palavras.
“Desculpe, capitão, mas não estou a entender. Quem é que está a autorizar a sua partida? “
“O Sidónio, caraças, quem é que havia de ser? “
“ O Sidónio Paes?”
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Sim, claro. Vou eu, vai o Almeida, o Cabral, o Carriço e mais uma data de malta que se dava com o Sidónio. Vamos fazer umas comissões em Lisboa, coisas importantes, embora não sejam de natureza militar. De qualquer modo, já estava na hora de o país reconhecer o nosso valor. “
Tudo se tornou agora claro para Afonso. Um rubor de irritação encheu-lhe o rosto, sobretudo ao ouvir o nome do capitão Cabral, aquele que em Tancos o tentou aliciar a juntar- se ao general Machado Santos para se revoltar contra os embarques para França.
Juntamente com os outros oficiais sediciosos, Cabral foi detido e enviado à força para a Flandres e era agora premiado com um regresso antecipado a casa. Baixando a voz e cerrando as sobrancelhas, Afonso formulou a pergunta seguinte num tom acusatório.
“O senhor meteu uma cunha para sair daqui? “
“Ó capitão!“, devolveu o outro com ar escandalizado, ofendido até. “Eu não fujo das minhas responsabilidades. Vossemecê não me conhece, mas eu sou um homem de bem, cumpridor dos meus deveres, fiel à pátria e à República. É com relutância, digo-lhe sinceramente, é com muita relutância que eu regresso a Portugal. Sabe, a verdade é que eu nunca quis ir, mas o Sidónio...“ Fez um gesto vago, como se procurasse a palavra adequada. “Olhe, o Sidónio é um tipo formidável, um gajo às direitas, amigo do seu amigo.
Ele mandou dizer que precisava de mim. Que ele precisava, não. Que a pátria precisava de mim. Ainda resisti, garanto-lhe, meu caro capitão Brandão, ainda resisti. Mas aquele manganão é tramado, tem um poder de persuasão que só visto, aquilo é uma força, um arrebatamento. De modo que, ai de mim! deixei-me convencer. Parto de coração destroçado, vossemecê pode crer, pode crer, mas parto com o sentimento de dever cumprido. E, se a pátria precisa de mim em Lisboa, o que quer? Quem sou eu para dizer o contrário? De modo que, meu caro capitão Brandão, eu e mais alguns amigos lá recebemos guia de marcha e vamos agora regressar. “
“E todos os oficiais que se vão embora consigo, como o capitão Cabral e os outros, estão também a responder a um apelo da pátria?”
“Sabe, eu quero crer que sim”, disse o capitão Resende, assumindo uma postura de confidência. “Mas suspeito de que haja alguns casos, esses sim, de cunha. “ Cerrou os olhos e fez um olhar entendido. “Cunha, digo-lhe eu. “