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O major Botelho aproximou a vela para observar melhor os olhos do soldado.

Passava das três da manhã quando o grupo de praças lhe apareceu no posto de socorros avançados a queixar-se de mal- estar, e o major era o médico militar de serviço. Analisou superficialmente os soldados, eram quatro homens e alguns gemiam. Começou com o caso que lhe pareceu mais agudo.

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“Como é que você se chama? “, perguntou, estudando os olhos inflamados do homem.

“Baltazar, meu major.“

“Como é que você apanhou isto, Baltazar?“

“Não sei, meu major. Estava no abrigo com os meus maradas e comecei a espilrar, a espilrar... “

“A espirrar”, corrigiu o médico.

“Isso. E aqui os meus maradas no mesmo. Depois sentimos o nariz e a garganta assim a arder, uma sensação cada vez mais forte, percebemos que estávamos com gripe. Há pouco, começaram-nos a doer muito os olhos e a sair ranho do nariz. Vieram-me também umas dores na barriga e vomitei antes de chegar aqui ao posto. “

“Quando é que começaram a espirrar? “

“Foi aí há umas doze horas, ao início da tarde, meu major. “ “E vocês? “, perguntou aos outros, sem tirar os olhos da inflamação de Baltazar.

“Nós o mesmo, meu major”, disse Matias. “Foi na mesma altura. A diferença é que não vomitámos. “

“A mim, para além da barriga, dói-me também a cabeça”, adiantou Vicente.

Abel Lingrinhas apontou para uns pontos na cara e no pescoço.

“Eu tenho aqui umas borbulhinhas. “

O médico ponderou o caso enquanto limpava os olhos de Baltazar com um algodão molhado.

“Hum”, murmurou pensativamente. “Vocês por acaso não apanharam um ataque de gás? “

“Não, meu major”, negou Matias, enfatizando com um abano da cabeça. “É gripe. “

“Hum”, voltou o médico a murmurar. “Abra a boca. “ Baltazar abriu e o major Botelho analisou a garganta irritada. “Não sentiram um cheiro a mostarda? “

“Não, meu major”

“Nem a alho? “

Os soldados entreolharam-se.

“ Bem. “

“ Sentiram um cheiro a alho?”

“Sim, meu major. “

O médico parou de inspeccionar Baltazar e mirou o grupo. “E não puse-ram as máscaras?

Os soldados baixaram a cabeça.

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“Não, meu major. “ O médico suspirou.

“Burros. Vocês são uns burros. Então não sabem que têm de pôr as máscaras logo que sentem um cheiro a químicos? Não sabem? “

“Meu major”, disse Baltazar, a voz submissa. “Nós não cheirámos químicos.

Cheirámos comida”

“Qual comida, qual quê! Vocês apanharam foi com gás em cima. Onde é que estavam quando vos cheirou a alho? “

“No abrigo, meu major. “

O major Botelho largou os olhos de Baltazar e sentou-se num caixote, junto a uma mesa. Tirou uns formulários de uma gaveta, colocou-os sobre a mesa e começou a tomar notas. “Quando saíram do abrigo, repararam em algumas granadas intactas?”

“Sim, meu major. “

“Como é que elas eram? “

Os homens entreolharam-se, não percebendo a pergunta.

“Bem, eram granadas de ferro, meu...

“Não é isso”, impacientou-se o médico. “Estavam pintadas com alguma cor?“

“Sim, meu major”, adiantou Matias, o mais observador do grupo. “Eram granadas de 7, 7 centímetros, de modelo

comprido, pintadas a azul e com a cabeça amarela. Lembro-me de que tinham duas cruzes, acho que uma era verde e a outra amarela. “

“Mau, não percebo nada. Verde e amarela ou azul e amarela? “ “As cruzes eram verde e amarela, mas as granadas estavam pintadas a azul e amarelo. “

“Azul e amarelo”, repetiu o médico, pegando num grosso dossier que se encontrava numa estante, a capa a indicar tratar-se dos relatórios dos Chemical Advisers do XI Corpo britânico. Abriu a pasta e folheou as páginas. “Azul e amarelo. “ Virou uma folha. “Azul e amarelo. “ Outra folha. Passou os olhos de relance por cada relatório, apenas atento ao segundo ponto de cada documento, intitulado nature of the shells. “Azul e amarelo. “ Mais uma. “Azul e amarelo. “ Mais outra. “Azul e amarelo... cá está. “ Pousou o dedo na linha que procurava e leu. “Painted blue with yellow on top.“ Tirou a folha e estudou-a com atenção.

Levou um minuto a analisar o relatório e a tirar as suas conclusões, mais para si do que para os homens. “Pois, estou a ver, isto é um derivado do enxofre com uma elevada percentagem de clorina”, murmurou, coçando o queixo. Consul-tou demoradamente o último ponto do documento, referenciado como symptoms of personnel. Mais um longo minuto de leitura e voltou enfim a quebrar o silêncio. “Pois, pois, está aqui tudo. Vómitos, olhos inflamados, irritações na garganta.“ Sem levantar a cabeça, arrancou uma folha do 330

formu-lário e começou a preenchê-la. “Vou mandar-vos para um hospital de sangue. “ Agora, sim, ergueu a cabeça e fitou os homens. “Nomes e números? “

“É grave, meu major? “

“É grave, é”, confirmou o médico, o olhar carregado. “É grave que vocês sejam casmurros que nem umas portas e não ponham as máscaras conforme diz o regulamento. “

“Mas é muito grave?“, insistiu Baltazar, ansioso e com os olhos a lacrimejarem profusamente por causa da inflamação.

“A única coisa que é grave é que o CEP vai ter de sobreviver sem vocês durante dois dias”, retorquiu o médico, prolongando o suspense. “Quanto às vossas miseráveis pessoas, vão ficar toda a noite aflitos, mas amanhã, pelo meio-dia, deverão estar melhores. Este é um gás tramado porque quase não se sente o cheiro, mas a vantagem é que não faz demasiado mal. Vou dar-vos uma baixa de quarenta e oito horas e depois regressam às trinchas. “

“Obrigado, meu major”, disseram todos quase em coro, aliviados e momentaneamente sorridentes. Não havia melhor coisa do que ter uma baixa devido a um mal que não era permanente.

“Vamos lá, vamos lá”, impacientou-se o major Botelho. “Nomes e números?

“Matias Silva, meu major. Número 216 “

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XI

Passava do meio-dia e a manhã, como de costume, tinha sido calma. As actividades de ambos os lados das trincheiras foram intensas desde o pôr do Sol da véspera, com legiões de homens a repararem passadeiras, a consertarem o arame farpado e a drenarem as passagens inundadas sob a protecção do manto escuro da noite, enquanto outros patrulhavam a terra de ninguém ou procura-vam alvos na mira das Lee-Enfield, se eram portugueses, ou das Mausers, no caso dos alemães. Quando os raios de sol espreitaram por fim, o astro erguendo-se lenta e majestosamente por detrás das linhas inimigas, já tinha decorrido o primeiro A Postos desse dia 8 de Fevereiro e muitos homens foram-se deitar.

Afonso e Pinto acordaram pelas onze, lavaram a cara numa bacia cheia de água barrenta e imunda, urinaram num canto húmido da trincheira, junto ao seu posto de Picantin, e sentaram-se sobre o caixote de munições para comerem o pequeno-almoço que Joaquim lhes trouxera. Engoliram rapida-mente a omoleta e as torradas com manteiga, regadas pela tapioca com açúcar e uma chávena de café forte. Quando estavam prestes a terminar, chegou o tenente Timothy Cook.