Acenderam uma lanterna e Matias observou de relance a figura estendida no estrado da trincheira. O cadáver estava inchado, a pele amarelo-acinzentada, um braço voltado para cima, hirto, congelado naquela posição, os olhos vidrados e revirados para cima, partes dos lábios e da face tinham sido arrancadas, presumivelmente pelas ratazanas, revelando a dentição, via-se ali o início da caveira. O cabo vomitou uma segunda vez.
“Não vai estar pior do que o tipo que foste buscar”, comentou Baltazar.
Matias olhou-o sem compreender.
“Quem?”
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“O boche do aeroplano, caraças! “, exclamou o Velho, enervando-se com o ar ausente do amigo. “Se acabou de morrer, não deve cheirar tão mal como o outro, pois não?“ Admirou a sua Lee-Enfield, já limpa e oleada. “Bem, a verdade é que, estando esfrangalhado no chão, deve ter as tripas de fora. E as tripas cheiram a merda, não é? “ O cabo mirou o parapeito com o olhar perdido no infinito e acabou o Woodbine.
Enterrou a ponta do cigarro na lama e atirou a beata para longe.
“Sabes qual foi o primeiro morto que eu vi, Baltazar? “
“ Hum.”
“Quando eu era miúdo, tinha uns catorze anos, havia uma gaja lá no bairro, em Palmeira, que era casada com um marinheiro. “ Afagou as patilhas. “Chamava-se Maria do Céu. Era mulher aí para uns trinta anos. Tinha uma cara larga e muito rosada, com uma verruga debaixo do olho. Não era bonita, mas tinha umas mamas do camano. Aquilo é que eram umas valentes catrinas “
“ Era um almazem?”
“Um almazem, não direi, mas tinha um ar bem constituído.“ Fez uma pausa, como se estivesse a recordar algo. “Um dia, a tipa veio ter comigo. Eu já era um matulão e na altura trabalhava na terra para quem me pagasse. Pois ela veio e disse que me queria contratar para trabalhar todas as manhãs no seu quintal, tinha uma horta para tratar e o marido andava lá nos barcos. De modo que fui. “ Coçou o nariz. “Aquilo não tinha nada que saber. Havia para lá umas batatas, umas couves, uns tomates, uma macieira, tudo com trementelos à volta, e no canto estava uma cerca com uns marranos e umas galinhas. Era tudo um pouco acanhotado. Fui para lá trabalhar naquilo e a tipa não me largava, abacou ali e ficou a topar-me. Pensei que era desconfiada. Olé, disse cá para mim. Então não é que a gaja me está a vigiar? Senti-me um bocado escamado, caraças, a coisa abuzinou-me um pedacito. Ao segundo dia pôs-se-me a fazer perguntas. Queria saber se eu tinha namorada, se era muito ribaldeiro, se já tinha dado bocaringas a alguém, coisas assim. Fiquei assim um bocado envergonhado, aquilo não eram conversas para ter com uma mulher, não é?
Passado um pedaço desta conversa, a gaja disse que queria mijar. Levantou a saia à minha frente e pôs-se a reinar, via-se a breixa e tudo. “
“Categoria. “
“Enquanto reinava, ela olhava para mim. Gostas de me ver a mijar? perguntou-me a tipa. Fiz que sim com a cabeça e senti a minha mingalha crescer dentro das calças, foi como se o mazápio tivesse acordado ao ouvir aquela pergunta. Acho que percebi ali o que a gaja queria. Era uma rifeira bem melada. Ela topou que a minha mingalha estava toda bazulaca e aproximou-se. Despiu a camisola e deixou as catrinas ao léu, aquilo é que eram uns melões 339
do catano, nunca tinha visto coisa tão boa. Estavam um pouco descaídos e tinham uns mamilos muito largos, avermelhados, com a ponta tesa. Tirou-me as calças devagarinho e agarrou-se com a boca ao mazápio. “
“Ena! Categoria! Só eu é que nunca tive vizinhas assim caraças. “
“De modo que, sempre que eu ia trabalhar para casa da Maria do Céu, era para a brincadeira. Ela ensinou-me tudo o que havia para aprender e era danada para as pinadelas, não havia dia nenhum que não pedisse o saçarugo. Mesmo quando andava chanfanada queria ir ao castigo, largava sangue por todo o lado, parecia um marrano em dia de matança, mas a tipa não se ficava, gozava o prato todo. Só havia ali uma coisa que era estranha. Ela fazia questão de que eu só lá fosse de manhã. À tarde, não. Só de manhã. De maneira que andei um ano na vadiagem todas as manhãs por conta da fome da Maria do Céu. “ Matias cuspiu para o chão, tentando expulsar os últimos traços do sabor ácido do vómito. “Um dia, o marido voltou e eu deixei de lá ir. O homem veio para ficar uns dias.
Ao fim de uma semana houve um grande reboliço, as vizinhas a chamarem ó da guarda, ó da guarda. O tipo tinha morto a mulher. “
“Ah!“, exclamou Baltazar, quase chocado. “Não me digas que ele soube que a gaja andava metida contigo.”
“Comigo, não. Mas, pelos vistos, percebeu que havia homens a irem ali a casa. O
marinheiro foi preso e eu fui lá pela última vez. Encontrei uma multidão à porta, as mulheres todas na conversa, pareciam umas galinhas tontas, e o corpo da Maria do Céu deitado no chão, numa poça de sangue. O tipo esfaqueou-a toda, viam- se golpes no peito e na barriga, uma tristeza. “
“E depois? “
“E depois, nada. Foi a primeira pessoa que eu vi morta, só isso. “ Ouviram um sibilo crescente, encolheram a cabeça e sentiram a explosão da granada duzentos metros atrás.
Voltaram-se para verem o penacho de fumo e poeira ascender ao céu e, após uma hesitação, Matias mirou o amigo de novo. “Fez-me um pouco impressão vê-la assim morta, parecia uma boneca, custava até imaginar que aquele corpo parado, que agora não reagia à minha presença, era antigamente uma fogueira esfaimada, nunca ficava quieto. Mas o que achei mais estranho é que não senti coisa alguma cá dentro. Tive pena, claro, até rezei por ela, era boa moça. Uma rifeira do camano, mas boa moça. Só que a gaja finou-se e isso não me abuzinou, nem sequer fiquei agónico. “ Tirou das calças o maço de ìfJoodbine. “Vai um xagrego?”
“Dá cá. “
Matias estendeu um cigarro ao amigo e tirou um outro, que colocou na boca.
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“Um ano depois, à conversa com um rapaz meu vizinho, o Lourenço, vim a descobrir uma coisa do caraças. “
“O quê? “
“A certa altura falámos, nem sei porquê, mas falámos na Maria do Céu. O tipo fez um ar comprometido e, assim meio a medo, contou-me que foi ela quem o levou pela primeira vez ao castigo. “ Raspou um fósforo e acendeu o cigarro, libertando a primeira nuvem de fumo. “Era sempre às tardinhas. “
Afonso e Joaquim seguiram o estafeta, o capitão algo nervoso com a convocatória que acabara de receber. Percorreram de novo a Picantin Road e foram apanhar a Rue du Bacquerot, flectiram para sul e, logo junto a Red House, viraram à direita para Harlech Road. Antes de chegarem à Rue de Paradis, voltaram à esquerda e entraram em Laventie, dirigindo-se para o edifício onde se encontrava sediado o quartel-general da brigada durante o período em que a força minhota permanecesse naquele sector de Fauquissart, na ponta norte das linhas portuguesas. O estafeta foi à sua vida e Afonso dirigiu-se ao graduado do edifício e indicou que vinha falar com o tenente-coronel Mardel. O graduado pediu-lhe a identificação, mandou-o esperar e voltou instantes depois, apontando-lhe a porta entreaberta. Afonso espreitou e viu Mardel.