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XII
Agnès sentia-se cansada. Apesar disso, fez um esforço para manter um ar sorridente ao passar pela enfermaria. Tinha permanecido a noite toda de serviço e o seu turno aproximava-se do fim, mas havia que manter uma aparência fresca perante os pacientes, era importante para o moral dos convalescentes. Além do mais, gostava do trabalho que fazia, desde que a guerra começara nunca se sentira tão útil, tão necessária, tão empenhada na vida, abraçava o cansaço com fome de trabalho, com a alma inteiramente dedicada à tarefa em mãos, o sonho de infância concretizava-se, era finalmente Florence Nightingale, um anjo de conforto a pairar num antro de dor e sofrimento.
A mudança que se operara na sua vida devia-a ao seu capitão.
Graças a uns cordelinhos mexidos por Afonso, entrara havia uma semana ao serviço no Hospital Misto de Medicina e Cirurgia, bem na retaguarda, escapando ao tédio do quartel-general de St. Venant e aos incómodos avanços do tenente Trindade Ranhoso. O
capitão tentou inicialmente colocá-la num dos dois hospitais de sangue, o hospital n. 1, em Merville, ou o hospital n. 2, em St. Venant, ambos constituídos por oito tendas e com capacidade para duzentos pacientes, mas Agnès tinha feito questão de ir para o mais longe possível do Ranhoso e o Hospital Misto parecera-lhe adequado. Adaptara-se facilmente ao trabalho, e os pacientes a ela, não era comum ver uma mulher daquela beleza a cirandar entre a soldadesca, uma palavra amável aqui, uma festinha ali, um sorriso cativante acolá, a sua simples passagem pela enfermaria era um tónico maravilhoso para os acamados.
Embora tivesse estudado para ser médica, via-se no papel de enfermeira e desempenhava-o com gosto e dedicação. Não falava português, mas os soldados desembrulhavam-se no patusco patois das trincheiras e isso parecia chegar. Moi pas bonne, mademoiselle bonne, boches méchants, eram frases que faziam agora parte do seu quotidiano de diálogos.
Agnès cruzou apressadamente a enfermaria nessa manhã porque tinha sido informada pelo contínuo de que um oficial se apresentara à porta do hospital para falar consigo. Presumiu que se tratava de Afonso, que o seu português estava de regresso das trincheiras, mas havia também a pavorosa possibilidade de ser uma má notícia, um amigo do amante com a terrível novidade, temia todos os dias que o que se passara com Serge viesse a repetir-se com Afonso, um correio desconhecido com um telegrama negro a 345
destruir-lhe a vida, e o pensamento encheu-a de ansiedade, de inquietação. Quase correu até à porta, o coração aos pulos, em sobressalto.
Ao chegar à entrada, estacou debaixo da aduela e suspirou de alívio, viu-o sentado num degrau, o boné nas mãos, os olhos fechados e a cabeça inclinada para trás de modo a melhor receber o ar fresco da manhã, deixando-se embalar pelo meloso ruflar dos beija-flores e pelo cantarolante gorjear das cotovias que esvoaçavam pelas tílias do jardim.
Murmurou de olhos cerrados uma breve prece de agradecimento e correu finalmente para ele, abraçou-o e beijou-o, dividida entre o alívio de o ver são e salvo e o dever de manter uma postura respeitável no perímetro hospitalar.
“Tu m'as manqué”, soprou-lhe ao ouvido.
“Mon petit choux”, foi tudo o que ele conseguiu dizer no calor do abraço.
“T'es bien? “
Ele fez que sim com a cabeça. Sentiu-lhe a delicada fragrância de Chypre e sorriu, era o perfume que lhe tinha oferecido em Paris. A francesa afagou-lhe os cabelos e, desprendendo-se devagar, pegou-lhe na mão e puxou-o.
“Viens, anda ver a minha enfermaria.
Afonso deixou-se levar, deslizando pela porta de entrada atrás de Agnès. O suave aroma de Chypre desapareceu de imediato e, em sua substituição, o capitão notou o cheiro a éter e a desinfectante a pairar no ar. O hospital revelava-se-lhe feio e frio, feito de compridos corredores de chapa zincada e canelada, tudo metálico e negro, pintado a piche.
O soalho, constituído por madeira encerada ou envernizada, rangeu quando o pisou; a luz entrava a jorros por janelas abertas em pestana na chapa de zinco. As mobílias eram de ferro e vidro, num estilo art nouveau rudimentar, aqui um jarro de begónias ou de rosas perfumadas, ali uma revista pregada na parede com uma beldade estampada na capa. Via-se muito movimento pelos corredores, uma azáfama de enfermeiros, um punhado de médicos e muito pessoal auxiliar, uns para aqui e outros para ali, atarefados e apressados, observados por pacientes silenciosos, alguns tossiam aflitivamente, cinco ou seis balouçavam nas cadeiras os cotos amputados das pernas e dos braços.
“Hoje é dia de evacuação”, explicou ela. “Vamos mandar pacientes para o hospital de Hendaya, de modo que isto está agora um pouco caótico.“
“Se calhar, era melhor eu vir visitar isto noutro dia...
“Não, fica. Só daqui a duas horas é que vão aparecer os camiões para levarem os pacientes à estação. “
“Estação?”
“Sim, claro. Hendaya fica junto à fronteira espanhola.” 346
“Mas isso é longe!”
“Oui. Não se percebe bem por que razão o exército português colocou em Hendaya o seu principal hospital. Mas, voilà, é mesmo assim.
Chegaram a uma porta e ela largou-lhe a mão.
“Esta é a minha enfermaria”, anunciou com intensidade. “Todos os pacientes que aqui estão são tuberculosos.“ Levantou o indicador. “Agora presta atenção. Nesta enfermaria, eu não sou a tua Agnès, sou a enfermeira que não só ajuda os acamados como até alimenta os seus sonhos, as suas fantasias, sobretudo a sua vontade de ficarem bons.
Portanto, nada de intimidades perante os doentes, ouviste?“
“Bem. “
“Ouviste?“
“Uh... sim. “
Feito o aviso, e parecendo dar-se por satisfeita com a titubeante resposta, empurrou a porta e entrou na enfermaria com Afonso no encalço. Era uma sala grande e bem iluminada, com camas dispostas em fila, lado a lado, de uma ponta à outra, um corredor de passagem pelo eixo central da enfermaria. Agnès seguiu por esse corredor, o capitão quase encostado a si, ao lado. O ar enchia-se de tosse, tosse persistente nuns casos, tosse seca noutros, alguns com pequenas bacias na mesinha de cabeceira para aí deitarem a expectoração, uns poucos a gemerem fracamente. A enfermeira francesa, com ar muito profissional, indicou um paciente que dormitava à esquerda.
“Este está muito fraco, tem febres constantes, não sei se se safa. “ Apontou para o do lado direito, que tossia consecutivamente. “Aquele vai um pouco melhor, mas também parece tremido. “ O seguinte da esquerda, com uma perna engessada. “Este é um caso curioso. Foi para a ala dos traumatizados, um estilhaço quase lhe levou a perna. Quando estava a recuperar, apanhou a tuberculose. Vai-se aguentando. “Mademoiselle”, chamou um, do lado direito. “Moi pas bonne. Massage, sirv'ó puré. “
“S'il vous plait”, corrigiu Agnès.
“Sirva o puré”, insistiu o paciente.
“Après, Luís, après”, retorquiu a enfermeira. Voltou-se para Afonso e riu-se. “Este é um brincalhão, diz que vai casar comigo quando a guerra acabar. “
“Ah é?”
“Não fiques com ciúmes, mon petit mignon”, sorriu Agnès.
“Ele está quase bom e vai ter alta em breve, de modo que não volta a pôr-me os olhos em cima.“
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O capitão não gostou, mas permaneceu calado. Sabia que era inevitável que a sua francesa, bonita como era, atraísse piropos num mundo de homens famintos de fêmeas.