“Sofremos muitas baixas? “
“Muitas.“ A cabeça abanou afirmativamente. “Muitas. Perdemos mais de cem homens.“
“Porra.“
“Os gajos caíram em cima de Infantaria 4, de Faro, e de Infantaria 17, de Beja. Fala-se até em cento e cinquenta baixas, entre mortos, feridos e prisio-neiros.“ Fez uma pausa.
“É uma merda!“
Afonso mirou o mapa das trincheiras, pregado na parede do posto.
“Conheço bem Chapigny. Já estive no Dreadnought Post e no Grants Post, mesmo atrás. “
“Passei a manhã numa reunião do comando para analisar a situação e discutir as nossas opções”, disse Mardel, como se não tivesse escutado Afonso. “Tenho boas e más notícias para si. Quais quer ouvir primeiro? “
O capitão fez um trejeito nervoso com a boca.
“Se calhar, é melhor começar pelas más. “
“Muito bem”, assentiu Mardel. “O general Simas esteve a discutir o seu raide com o general Tamagnini e decidiram não avançar. “
Afonso suspirou profundamente. Parecia um suspiro contrariado, feito de desilusão e frustração, mas era na verdade um suspiro de alívio, o capitão não tinha vontade nenhuma de avançar a peito descoberto pela terra de ninguém, debaixo de uma chuva de balas e estilhaços, nem alimentava ambições de grandes actos de bravura. Queria era viver, sobreviver se necessário, mas sobretudo saborear todos os momentos, deleitar-se com cada instante, procu-rava apenas os prazeres simples que a vida lhe concedia, os pequenos nadas, comer um bacalhau, beber umas cervejolas, dormir numa cama de palha, amar Agnès. O
projecto de raide não o entusiasmava, era uma mera obrigação de militar, um risco estúpido e desnecessário, o capricho de um cachapim da retaguarda que fantasiava feitos de glória arriscando a vida alheia. Mas não o podia confessar. Por isso, simulou desapontamento.
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“É pena”, lamentou com disfarçada satisfação. “Sabe dizer-me por que razão decidiram assim?“
“Afirmativo”, exclamou Mardel. “Foi emitida há dias uma ordem do Exército britânico a colocar em prática um acordo de Janeiro entre os governos de Portugal e da Grã-Bretanha. O acordo prevê a dissolução do CEP como corpo autónomo e a sua integração num corpo de exército britânico, sendo tratado como se fosse uma formação inglesa. O CEP ficará com uma divisão nas primeiras linhas e a outra irá para o descanso.
Como a 1. a Divisão está há mais tempo nas trinchas, será ela a descansar. Ora, à luz dos acontecimentos de hoje, o comando decidiu lançar mesmo um raide e, uma vez que a 1. a Divisão está de saída, o comando entendeu que ela deveria sair em grande. Tendo de escolher entre um raide de Infantaria 8 e outro de Infantaria 21, o comando optou pela proposta do 21, uma vez que essa unidade pertence à 1. Divisão. “
“Que sorte que esses gajos tiveram”, comentou Afonso, já descontraído.“ O 21 é donde?”
“É malta da Covilhã. “
“Mas que grande vaca! Vê-se mesmo que nasceram com o cu virado para a Lua. “ Mardel sorriu pela primeira vez.
“Mas, ó capitão, tenho também boas notícias para si.“ “Ah pois”, excla-mou. Se as más notícias tinham sido assim tão boas, Afonso ficou com curio-sidade para saber se as boas poderiam ser ainda melhores. “Então conte lá.“
“O general Simas intercedeu veementemente por si e obteve uma concessão do general Tamagnini e do general Gomes da Costa. “
“Uma concessão? “
“Afirmativo. O general Gomes da Costa aceitou que um pelotão do 8 fosse incluído no raide do 21“
“Como assim?“
“Ó homem, será que tenho de lhe explicar tudo? Você também vai participar no raide, caraças!“ Estendeu-lhe a mão. “Parabéns Agnès veio nessa noite algo diferente.” Afonso estava sentado na cama a fumar um Tagus e a consumir-se com o pensamento de que iria mesmo participar no raide quando sentiu a porta abrir-se e viu a sua francesa entrar. Ela vinha com um elegante jersey de malha e um casaco de lã azul sem gola e abotoado à frente. Agnès sorriu fracamente, sem convicção nem espontaneidade. Os lábios esboçaram o sorriso, mas os olhos verdes mostravam-se carregados de preocupação.
Pousou dois sacos à entrada, fechou a porta e veio dar-lhe um beijo.
“Salut, mon mignon”, saudou-o.
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Afonso devolveu-lhe distraidamente o beijo e ficou sentado na cama a vê-la dirigir-se à banca da cozinha e a preparar o jantar. Em circunstâncias normais, ele teria de imediato notado que havia algo de anormal naquele comportamento, que ela não estava em si. Mas aquelas não eram circunstâncias normais. O capitão passou o último mês angustiado com a perspectiva do raide que andava a preparar e dividido quanto ao que poderia contar-lhe.
Deveria dizer-lhe que iria participar num ataque às linhas alemãs? O mês esgotou-se rapidamente, e agora, com o raide na iminência de ser efectuado, a angústia tornou-se profunda e deixou-o cego ao mundo em redor. O tenente-coronel Mardel revelara-lhe que a operação fora marcada para 9 de Março, daí a exactamente uma semana, e que ele teria de se articular com os homens do 21. O anúncio significava que o capitão teria de tomar uma decisão em relação ao que dizer a Agnès. Passou as últimas horas a ponderar o assunto e sentia-se inclinado a nada lhe contar. De que serviria mortificá-la com a notícia?
O que tinha a ganhar com isso, a não ser uma semana de ansiedade partilhada? Por outro lado, considerou que talvez aquela fosse a sua derradeira semana juntos, talvez não a voltasse a ver, e interrogou-se se teria o direito de lhe ocultar essa informação.
Embrenhado nos seus pensamentos, Afonso demorou a perceber que Agnès se encostara à banca num pranto silencioso. Os olhos viam-na, mas o cérebro não registava.
Até que, sem que o esperasse, uma imagem das lágrimas da francesa se intrometeu na complicada cadeia de raciocínio que lhe consumia a mente. O capitão estremeceu, como se acabasse de despertar, e viu-a com olhos de ver, viu-a curvada na banca a chorar baixo, uma mão diante da boca, os olhos cerrados e brotando delicadas gotas que deslizavam devagar até ao queixo. Ergueu-se num salto, surpreendido e alarmado, e foi abraçá-la.
“O que se passa, mon petit choux? “
Ela soluçou e fixou os olhos no soalho.
“C'est rien, c'est rien. “
Afonso suspeitou de que ela tinha sido informada do raide. Admirou-se por constatar que uma informação tão secreta estivesse já a circular entre os civis, parecia impossível, mas depois lembrou-se de que Agnès trabalhava no hospital, e num hospital sabe-se tudo.
“Tem calma”, soprou-lhe ao ouvido. “Tem calma. “ Ela encostou-se ao seu corpo e Afonso sentiu-a tremer. Pegou-a ao colo e levou-a para a cama, deitou-a com delicadeza e limpou-lhe as lágrimas. Agnès estava vermelha, a face molhada, os olhos verdes a brilharem com intensidade, mais bela do que nunca. Esboçou um sorriso doce, confortado.
“Merci, mon mignon. “
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O capitão sentiu-se derreter com o calor suave daquelas palavras. Beijou-a nas bochechas e nos lábios húmidos, passou-lhe os dedos pelos cabelos longos e encaracolados, deslizou o indicador pelo nariz arrebitado e molhado.
“Diz-me o que te apoquenta. “
Agnès ergueu-se lentamente na cama, sentou-se e fixou em Afonso os seus olhos cristalinos e enamorados, mas neles via-se também preocupação, vislum-brava-se receio.