Faltavam cartuchos, cada soldado apenas estava munido da sua dotação individual.
Além disso, não havia granadas de mão nem de espingarda. O major lembrou-se então de que os homens de Infantaria 24, que antes ocupavam Senechal Farm, deixaram várias caixas de cartuchos abandonadas, espalhadas pelo acantonamento de Lacouture, e foi com os soldados buscar essas munições, entretanto recolhidas e guardadas na secretaria. Os cartuchos foram distribuí-dos a todos. E, quando a segunda companhia partiu finalmente, Mascarenhas saiu à procura de mais munições.
Foi ao fazer a toilette da manhã que Agnès pela primeira vez se apercebeu de que algo de anormal estava a passar-se. Ao aproximar-se da janela do anexo reparou que o rumor da artilharia tinha recrudescido de intensidade em relação ao habitual. Deteve-se a 406
meio de um movimento e ficou estática, atenta aos sons distantes. Em vez dos costumados estampidos que caracterizavam os longín-quos tiros de canhão, notou agora um rolar permanente, um marulhar ininter-rupto e assustador. Abriu a porta e esticou a cabeça para fora, confirmando essa impressão. Ficou apreensiva e pensou imediatamente num raide.
Para se acal-mar lembrou-se repetidamente de que Afonso desempenhava funções de secre-taria e não ocupava as primeiras linhas. Além do mais, nada garantia que, a ser um raide, se tratasse de um raide inimigo. Podia muito bem ser uma operação dos portugueses.
Acalmou-se. O pânico deu lugar a um nervosismo miudinho.
Saiu à rua quinze minutos depois, num estado de grande inquietação, ansiosa e perturbada. Pegou na bicicleta e dirigiu-se apressadamente ao hospital para assegurar o turno que lhe fora destinado. Pedalou com os olhos voltados para leste, para a fonte do fragor da batalha, e percebeu pela reacção dos transeuntes que também estes achavam que o barulho da artilharia era mais intenso do que o habitual. Igualmente o tráfego de viaturas militares parecia anormalmente elevado, o que contribuía para o estado de nervosismo geral que se apossara de todos.
Logo que entrou no hospital, Agnès notou que o ambiente era caótico, o movimento intenso, o pátio encontrava-se pejado de feridos e pairava no ar uma inquietação indefinível. Com um mau pressentimento a pesar-lhe a alma, a francesa passou pela secretaria.
“mademoiselle!“, chamou a enfermeira-chefe portuguesa quando a viu pela porta do seu gabinete. “Hoje precisamos de si nos traumatizados, vai para lá um reboliço que só visto!“
“Nos traumatizados? Porquê?”
A enfermeira-chefe estacou, surpreendida.
“Porquê? Ora, que pergunta! Então não vê que hoje temos muitos feridos?“ Agnès sentiu-se paralisada. Queria formular a pergunta que tinha em mente, a pergunta crucial, a pergunta que a consumia desde que pela primeira vez ouvira o anormalmente intenso marulhar da artilharia. Experimentava, porém, um pavor que a imobilizava, receava a resposta, temia a verdade. Hesitou um longo segundo, angustiada e indecisa, mas acabou por pronunciar as palavras que a sufocavam.
“O que se passa “
A enfermeira-chefe preenchia o registo das admissões da última hora e nem levantou a cabeça.
“Então não sabe? Os boches lançaram uma grande ofensiva. “ O coração de Agnès disparou.
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“Onde?“
“Em todo o sector português. Ferme du Bois, Neuve Chapelle, Fauquissart. É uma catástrofe, há muitos mortos e os feridos estão sempre a chegar, são às centenas. “ Agnès olhou apavorada para o registo que estava a ser feito pela enfermeira-chefe, arrancou-o com brusquidão das mãos da sua superiora hierárquica, deixando-a boquiaberta, e procurou com sofreguidão e em grande estado de ansiedade o nome do capitão Afonso Brandão. Percorreu a lista três vezes. Depois de se certificar de que ele não constava do registo, deixou cair o documento no chão e foi a correr para o pátio. Com os olhos marejados de lágrimas e a mão direita colada à boca, ficou vidrada a mirar o horizonte.
“Alphonse”, murmurou, abalada.
Quis gritar, mas as forças faltavam- lhe, apenas um soluço lhe assomou à garganta.
Ali permaneceu especada, de olhar perdido, invadida por pressenti-mentos tumultuosos, o desespero a apossar-se-lhe da alma, a esperança atirada para um recanto, acossada e esquecida. Sentia-se perdida, amedrontada, aban-donada pelo destino, cercada pelo sinistro fragor da batalha, esmagada pelas tenebrosas colunas de fumo negro que se estendiam para o céu num pavoroso augúrio de morte, eram afinal o oráculo, a profecia de uma terrível tragédia.
Pouco passava das nove da manhã e Afonso sabia que a situação era muito crítica. O
sargento Rosa tinha-lhe trazido a notícia de que os alemães estavam a flanquear o batalhão, entrando pelo sector inglês de Fleurbaix, o que significava que o posto corria o risco de ser cercado.
“Não entendo por que motivo os bifes não disseram nada” desabafou para Pinto.
“Então os gajos recuam e não avisam? “
O tenente Pinto encarou-o com ar alucinado. “Devíamos fazer como eles, Afonso”, disse. “Se os tipos cavaram, temos também de cavar, é perigoso estar aqui. “ Afonso ficou siderado com este comentário proferido diante das praças.
“Ó tenente, componha-se!“, rugiu o capitão, assumindo com firmeza o seu papel de superior hierárquico. “Não quero ouvir aqui esse tipo de conversa! Temos um dever a cumprir e vamos cumpri-lo. Faça o favor de garantir que os homens sob este comando se mantêm com espírito de combate “
O tenente nada mais disse e foi sentar- se junto ao telefonista, cabisbaixo. Afonso olhou-o com preocupação. Pinto parecia-lhe muito assustado. Recusa-va-se a sair do abrigo, alegando os mais variados e absurdos pretextos, trans-pirava abundantemente e mantinha-se alheado das funções de comando a que, por ser oficial, estava obrigado. O
capitão considerou que, dadas as circuns-tâncias, isso era normal, ele próprio se encontrava 408
terrivelmente amedrontado, mas o Cenoura não deveria deixar transparecer de modo tão visível o seu medo, sobretudo à frente dos homens. Mais do que afectar o prestígio dos oficiais, essa atitude era, naquelas circunstâncias, tremendamente perigosa.
Uma intensa fuzilaria eclodiu nesse momento no posto. As metralhadoras e as espingardas desataram a disparar, e ouviam-se zumbidos por todo o lado. Afonso saiu do abrigo de comando e foi a correr até um dos três ninhos de Vicers existentes no posto. O
operador da metralhadora disparava furiosamente para a frente, enquanto o ajudante preparava uma segunda cinta de balas para encaixar na arma. O capitão colou-se-lhe à orelha, tentando fazer-se ouvir no meio da cacofonia.
“O que se passa? “
“Boches, meu capitão”, gritou o ajudante de volta. Apontou em frente e Afonso viu capacetes a movimentarem-se nas linhas, eram centenas e centenas. “Estão ali.“ O capitão olhou em redor e viu os soldados que defendiam o posto de Picantin a abrirem fogo para leste e para norte. Voltou ao abrigo de comando para pegar, também ele, numa espingarda e coordenar a defesa. Assomou à porta e deu as suas ordens.