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“Antes da batalha? Como assim? “

“Seis dias antes do ataque dos boches, o general Haking, que comandava o XI Corpo, emitiu uma ordem à 2. Divisão do CEP para morrer na linha caso o inimigo avançasse. A ordem mencionava explicitamente essa instrução, morrer na linha B. “

“E o que é que vocês fizeram? “

“O que é que havíamos de fazer, diga lá? Ouvimos, calámos e não dissemos nada a ninguém, não queríamos espalhar o pânico. É por isso que você não soube. “

“Ah bom”, exclamou Afonso. “Muito me conta, sim senhor. “ Fez uma pausa, observando o empregado do restaurante do hotel a servir as iscas de fígado, acompanhadas de arroz branco e cebola frita. Quando o empregado se retirou, os dois oficiais começaram a comer em silêncio. Afonso trincou a primeira fatia da sua isca e retomou a conversa enquanto mastigava. “Mas então, meu coronel, estava a dizer-me que os boches avançaram por ali fora e os camones começaram a ver as coisas pretas “

“Pois, foi isso, mas tudo se compôs e veio a verificar-se que aquela foi verdadeiramente a última grande ofensiva dos boches. Os aliados estancaram a hemorragia aberta no nosso sector e passaram depois ao ataque, acabando por ganhar a guerra. “

“Vá lá, vá lá, a nossa reputação conseguiu escapar ilesa... “ Mardel parou momentaneamente de mastigar e fez um trejeito de boca.

“Negativo, capitão Brandão, negativo. A bem dizer, a nossa reputação ficou foi na lama. Os bifes passaram a olhar-nos com desconfiança, diziam que não tínhamos capacidade de combate, que tínhamos fugido, que éramos uns desorganizados, que só servíamos para dar umas pinadelas às demoiselles, que isto e que aquilo, e mandaram as nossas tropas fazerem trabalhos de estrada, como se a malta não passasse de uns operários de terceira, de uns chinocas. Foi uma vergonha.“

“Ora essa! Mas eles não sabiam o que aconteceu? “

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O coronel inclinou-se na mesa e fitou-o fixamente.

“E o que aconteceu, diga-me lá? “

Afonso devolveu-lhe o olhar, atrapalhado.

“Bem... uh... enfim, tudo”, gaguejou.

“Mas o quê? Explique-me lá o que poderíamos nós dizer aos bifes? “

“Sei lá... talvez, não sei, talvez que houve seis batalhões nossos que resistiram, por exemplo, ou que a nossa única divisão, que se encontrava já bem cansada e desgastada, apanhou com quatro divisões boches pela frente, todas elas fresquinhas como alfaces. Ou ainda que a nossa única divisão defendia uma linha que era suposto ser defendida por duas divisões, portanto com menos soldados por quilómetro de trincheira.“ O capitão fez um ar inquisitivo. “Não é? Que eu saiba, não foi pouco, não acha?

Mardel voltou ao seu prato, trinchando mais uma fatia.

“Alguns camones sabiam o que aconteceu realmente, é verdade, mas a maior parte só ligou ao facto de que os boches entraram pelo nosso sector. Ou seja, se nós cedemos, é porque éramos fracos. Ponto final. Tudo o resto não passava de conversa.

Afonso suspirou.

“Bem, meu coronel, temos de reconhecer que isso tem efectivamente algum fundamento. É um facto que as nossas tropas estavam muito desgas-tadas, mas disso não tinham os bifes culpa nenhuma. Se as tropas se sentiam cansadas, que descansassem, caraças! Portugal devia era substituí-las. Se não substituiu é porque mostrou incapacidade para andar ali. E, se não era capaz de sustentar o esforço de guerra, que não se metesse naquelas cavalgadas. O governo devia era ter juízo e mandar a gente de volta.“

“É verdade, é verdade”, concordou Mardel, mastigando a comida. “Os bifes não têm nada a ver com o facto de que a malta foi abandonada por Lisboa. Tudo o que eles sabiam é que já não nos encontrávamos em condições de combater, e isso, bem vistas as coisas, era realmente verdade. “

Afonso engoliu a derradeira fatia de iscas.

“Portanto, se bem compreendi, nunca mais nos mandaram para a frente de combate.“

“Bem, isso é inexacto”, indicou Mardel. “A malta de artilharia voltou a combater, integrada em unidades inglesas, e nós chegámos também a meter dois batalhões de infantaria em acção, mesmo no final da guerra. Andaram para lá a perseguir os boches nas margens do Escalda. “

“Ah sim? Lisboa sempre mandou os reforços? “

Mardel riu-se com gosto.

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“Lisboa? Lisboa estava-se a cagar para a malta! “ Ergueu o indicador. “Não nos mandaram nem um homem, nem sequer um maricas para amostra, eles não queriam saber do pessoal para nada “

“Mas, então, que infantaria foi essa? “

“A mesma de sempre, homem, a malta que já lá andava. “ “Ah é? E como é que o pessoal reagiu? “

“Mal, como você calcula. Houve revoltas sucessivas, incluindo até da Brigada do Minho, e ocorreu mesmo um incidente do qual nem quero falar. “ Afonso ficou curioso.

“Incidente? Que incidente? “

“Já lhe disse que não quero falar nisso. “

“Vá lá, diga lá. Já que mencionou o assunto, conclua, que diabo! Não me deixe assim pendurado, isso não se faz. “

Mardel hesitou. Respirou fundo, inclinou-se sobre a mesa e baixou a voz.

“Isto que lhe vou contar não se pode saber, percebeu? Não se pode saber.“

“Muito bem, vou ficar de bico calado, esteja descansado. Mas conte lá. “

“Então é assim”, começou Mardel, inclinando-se para a frente, o tom muito secretivo. “Tudo aconteceu em meados de Outubro, mais exactamente na noite do dia 16.

Portanto, a menos de um mês do fim da guerra. Estava-se na altura a tentar reunir unidades com o objectivo de as preparar para serem enviadas para a frente de combate, era um esforço destinado a reorganizar o CEP. Ora bem, os magalas do reconstituído batalhão 11/17 souberam destas intenções e pegaram em armas durante o bivaque. Que não iam, que nem pensar em marchar para o açougue, que mandassem outros, que já tinham feito mais do que o suficiente, que queriam era voltar para Portugal, que fossem todos para o raio que os partisse e que fossem também para outras partes, enfim, você imagina. Vai daí, o comando não esteve de modas. No dia seguinte, 17 de Outubro de 1918, nunca mais me esquece essa data, nesse dia decidiram actuar à séria. Chamaram Infantaria 23, os revoltosos foram cercados e, pimba! metralharam-nos.“

Fez-se uma pausa.

“O quê?“, murmurou Afonso, incrédulo. “O quê? “

“Mataram-nos a tiros de metralhadora. “

A derradeira visita de Afonso a Braga serviu para acertar as últimas contas do passado. O capitão demissionário nunca mais falou com o tenente Pinto. Quando por acaso com ele se cruzava nos corredores do quartel, virava a cara para o lado, não lhe 461

perdoava a fuga no momento mais difícil da companhia no 9 de Abril, quando do cerco ao Picantin Post.

A verdade, porém, é que só havia mesmo uma pessoa que Afonso fazia absoluta questão de reencontrar. O problema é que desconhecia o seu paradeiro. Fez vários inquéritos e a oportunidade acabou por surgir a dois dias de regressar a Rio Maior, quando o alferes que trabalhava na secretaria do quartel descobriu um documento a referenciar a residência do homem que procurava num sítio chamado Palmeira, um lugar remoto a norte de Braga. Sem perder tempo, o capitão requisitou um cavalo e trotou até ao local. Meteu pelos caminhos de terra e foi dar com a morada que rabiscara num papel.

“É aqui que mora o Matias Silva? “, perguntou Afonso, inclinando- se da montada.

Uma velha minhota, curvada na bengala, a pele enrugada em torno dos olhos azuis, um lenço negro a cobrir-lhe a cabeça, apontou tremulamente para a casa ao lado.

“O Matias é ali, senhor”