Sabe? “
Afonso abanou a cabeça.
“Agarrei o Manápulas e não o deixei ajudar o Lingrinhas.“ Uma grossa lágrima correu pelo rosto rude de Matias. “Agarrei-o com toda a força, toda a força, e não o deixei ajudar o Lingrinhas, coitadinho, o Lingrinhas que morria ali no meio da Tilleloy, sozinho, sozinho, sem ninguém ao menos lhe dar a mão.
Soluçou. “Sonho muitas vezes com o Lingrinhas e o Manápulas, sonho que deixo o Manápulas ajudar o Lingrinhas e que o Lingrinhas se safa e fico feliz... Mas depois, quando acordo... quando acordo vejo que não passou tudo de um sonho, que o Lingrinhas morreu porque não deixei o Manápulas ajudá-lo. “ Fungou e limpou o nariz. “E o Velho, que morreu estupidamente! Se o meu capitão visse os filhos, coitados, tão felizes quando lhes disse que o Baltazar os adorava, que ele só falava neles... que morte estúpida o Velho teve, meu capitão. Morrer quando se rendia... “
Afonso saiu destroçado do encontro com Matias. A conversa foi catársica, fez-lhe bem, mas não tinha a certeza de conseguir sobreviver a outra igual. Planeara antecipadamente dar um salto a Vila Real para abraçar o major Mascarenhas, o velho amigo sportinguista da Escola do Exército, o homem de Infantaria 13 que resistira mais de vinte e 465
quatro horas em Lacouture, mas a dolorosa experiência com Matias dissuadiu-o, achou que não iria aguentar e preferiu regressar discretamente a Rio Maior. Seria Carolina quem iria suportar a guerra que ele levava na cabeça.
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VI
As contas da Casa Pereira não batiam certas. Afonso endireitou os óculos e decidiu recomeçar a soma das vendas do dia. As cópias dos recibos assinalavam a data, 9 de Abril de 1928. Os olhos de Afonso retiveram-se na data. 9 de Abril? Recostou-se na cadeira do seu escritório, abalado. Dez anos. Fazia nesse dia dez anos que ocorrera a grande batalha.
Parecia a Afonso que os trágicos aconteci-mentos da Flandres se tinham passado apenas na semana anterior. O antigo capitão contava agora trinta e oito anos e não conseguira ainda digerir tudo o que se passara na sua vida naquele fatídico ano de 1918.
Olhou para as fotografias que tinha espalhadas pela secretária, numa estava ele, todo janota, com a sua farda de oficial e os olhos carregados de esperança e sonhos de glória, um bengalim na mão e uma pose imperial. Outra era uma foto de família, ao seu lado encontravam-se Carolina e os três pequenos filhos, Rafael, Joaquim e Inês, cada nome uma homenagem, o mais velho era um tributo ao pai, o do meio à sua ordenança na Flandres e a menina a Agnès. Se tivesse mais um menino, pensou, chamar-lhe-ia Matias, em memória do valente cabo, o irmão de armas que morrera meses depois do seu derradeiro encontro, havia mais de cinco anos. Alguém lhe disse que Matias expirou pela última vez na sua miserável casa de Palmeira, asfixiado, os pulmões liquefeitos, mais uma vítima tardia dos gases das trincheiras.
Decidiu nessa noite beber em memória dos seus camaradas e da sua francesa, gente que lhe ficou na carne, pessoas que o acompanhavam todos os dias, em pensamento, em sonhos, em pesadelos. Os pesadelos eram diários desde que regressara a Portugal. Sonhava com Joaquim, que deixara ficar no posto de Picantin para morrer. Sonhava com o sargento Rosa, abatido ao seu lado numa trincheira miserável. Sonhava com Baltazar, caído quando erguia os braços em rendição. Sonhava com Matias, o grande Matias, generoso e valente, um coração de ouro e uns pulmões de merda. E sonhava sobretudo com Agnès, via-a entrar-lhe em casa, dialogava com ela, falavam sobre Freud e sobre a vida, sobre Deus e a medicina, a arte e a ciência, conversavam tanto em tantas noites que Afonso chegava a interrogar-se se os sonhos não seriam mesmo uma forma de manter o contacto com o além, de estabelecer ligação com as pessoas que realmente contavam.
Abanou a cabeça, espantando os fantasmas como se fossem uma nuvem de fumo e regressando daquele mundo já desaparecido. Agora, raciocinou, não podia estar com 467
fantasias, tinha mesmo era de voltar ao presente e refazer as contas. Inclinou-se sobre a secretária e mergulhou de novo nas facturas.
Ouviu um tumulto no corredor, a porta do escritório abriu-se com violência e Carolina irrompeu num pranto.
“Afonso! Afonso! “ “ O que foi, filha?”
“A minha mãe... a minha mãe está-se a sentir mal. “
Dona Isilda foi a enterrar no dia seguinte, uma manhã primaveril de Abril. Carolina era filha única e única herdeira, mas não se encontrava em condições de tratar dos papéis, tarefa de que Afonso ficou encarregado. Passou dois dias a remexer os documentos da velha. Viu títulos, hipotecas e contas e no final deitou mãos à pasta da correspondência.
Eram sobretudo cartas do irmão, dos primos, de amigas, de vendedores, de credores e de fornecedores. Quando se preparava para fechar a pasta, Afonso notou, no meio de todas aquelas cartas, um pequeno envelope que lhe era endereçado. Estranhou ver entre a correspondência para dona Isilda uma carta que lhe estava destinada e olhou para o selo.
Era francês. Estudou o carimbo e verificou que o envelope tinha sido remetido de Lille.
Abriu a boca de espanto e ali ficou a mirar o envelope, incrédulo, a interrogar-se sobre o seu conteúdo, a decidir o que fazer. Com as mãos trémulas, retirou a folha dobrada dentro do sobrescrito e leu o texto, redigido em francês:
Lille, 9 de Dezembro de 918
Caro capitão Alphonse Brandão,
É com o maior pesar que lhe venho comunicar a morte da minha querida filha, Agnès Chevallier, vitima da terrivel gripe espanhola que tantas vidas está a ceifar por essa Europa fora.
Desconheço se o senhor já regressou do cativeiro, mas rogo a Deus que esta minha missiva o encontre de saúde. Foi a minha própria filha quem me deu a morada da senhora sua mãe, que espero lhe faça chegar a carta que esperava nunca ter de lhe escrever.
Lille foi libertada no passado dia 17 de Outubro pelas tropas britânicas, e Agnès apareceu em minha casa logo no dia 20. Não pode calcular a nossa alegria nem a felicidade que ela sentiu quando lhe mostrei a carta que me remeteu da Citadelle, ela que o julgava morto nos campos de batalha. Agnès estava, como saberá, grávida e deu à luz uma bela menina no dia 27 de Outubro, a quem baptizou de Marianne, aparentemente em homenagem à senhora sua mãe.
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Mas a nossa felicidade não durou muito. Na semana passada, Agnès começou a queixar-se de fortes dores de cabeça, dizendo que parecia que estavam a dar-lhe marteladas mesmo atrás dos olhos. Além disso, veio-lhe uma tosse assustadora e sangrou do nariz. Alarmados, levámo-la ao hospital de St. -Sauveur, donde não mais saiu. Atiraram-na lá para uma enfermaria especial e não nos deixaram ficar com ela. Um amigo meu que trabalha no Instituto Pasteur pediu informações aos seus colegas do hospital e disse-nos, nessa noite, que o caso era muito grave. A tosse tornara-se muito violenta e as hemorragias tinham-se estendido para os ouvidos. Agnès apanhou a gripe espanhola e foi colocada de quarentena numa enfermaria onde se encontravam internadas todas as pessoas que contrairam a epidemia. Como deve calcular, ficámos em pânico, mais ainda quando o nosso amigo nos comunicou que a pele dela estava agora azul-escura, parecia uma negra de África. Não há dúvida, foi atacada pela peste negra, só que ninguém lhe chama esse nome para não assustar as pessoas mais do que elas já estão. Garantiu-me o nosso amigo que muitas pessoas atingidas pela espanhola acabavam por recuperar, mas, infelizmente, não foi esse o caso da mi nha Agnès.