Corria então o ano de 1896, as vendas de tonéis de vinho aos armazéns tinham sido excelentes e havia dinheiro disponível para o ansiado passeio.
Levantaram-se pelas quatro horas da madrugada do domingo de 9 de Agosto, vestiram as melhores roupas e rezaram à mesa de modo a compen-sarem a missa dominical a que teriam de faltar. Afonso era, nessa altura, um rapaz franzino, de cabelos castanhos lisos e olhos cor de chocolate a sobressaírem na sua tez pálida. Apesar do sono, transbordava de entusiasmo e excitação, mal podia esperar pela grande viagem.
Os Laureanos pegaram em dois sacos de farnel previamente preparados e num garrafão de tinto e apanharam a carreira. Pagaram quinhentos réis por pessoa, bilhetes de ida e volta, e seguiram pela Estrada Real n. o 65 até às Caldas da Rainha. Na estação das Caldas compraram bilhetes de 2. a classe para o primeiro rápido, a mil setecentos e vinte réis cada um, e, às sete e meia da manhã, o casal Laureano e os três filhos mais novos apanharam o comboio. Foram parando em sucessivas estações e apeadeiros, primeiro Óbidos, depois outros lugares de que Afonso nunca tinha ouvido falar, Bombarral, Outeiro, Ramalhal, Torres Vedras, perderam a conta, mas na Porcalhota sentiram-se já com um pé na capital, seguiram-se Bemfica, Campolide e Alcântara, acabaram por entrar no Rocio às dez e meia da manhã.
“Ai que confusão, valha-me Deus”, queixou-se Mariana, afogueada pelo calor estival e atarantada com o nervoso movimento na estação. “Vamos à Ermelinda?”
“Tem calma, mulher, tem calma”, devolveu o marido, excitado por conhecer a cidade e nada interessado em desperdiçar o passeio em casa de uma moribunda que mal conhecia.
“Temos tempo para a tua prima, fica descansada. Mas, primeiro, vamos lá dar uma 14
voltinha, anda. “ Olhou em redor, os edifícios pareciam estranhos, sofisticados, grandiosos, os homens eram uns janotas, mas, sobretudo, havia ali mulheres com ar distinto, sombrinhas na mão e aspecto bem tratado, umas verdadeiras flores, duquesas certamente.
Esfregou as mãos, radiante. “Isto promete, olé se promete!” Tudo aquilo era para eles novidade. O senhor Rafael, compenetrado na sua responsabilidade de chefe de família, mostrava-se particularmente nervoso. Para se sentir mais à vontade, ao interpelar qualquer pessoa procurava sempre colocar Rio Maior na conversa, era um modo de o transportar para um lugar familiar, coisa que começou por fazer logo ali na estação.
“Ó amigo, você já passou por Rio Maior? “, perguntou a um funcionário da Companhia Real dos Caminhos-de- Ferro Portuguezes.
O homem mirou-o embasbacado.
“Eu? Não”
“Fez mal”, retorquiu o senhor Rafael. “Diga-me lá para onde é que é o Terreiro do Paço.”
Afonso era ainda pequeno, mas o bulício agitado da vida citadina não escapou à sua atenção. Apanharam a boleia de uma carroça proveniente de Alverca, o boleeiro era um saloio que viera à cidade levar batatas para o Campo das Cebolas, e atravessaram uma praça de dimensões nunca vistas, um largo tão grande que certamente Rio Maior caberia lá inteirinho.
“Esta é a Praça de D. Pedro IV”, anunciou o saloio, fazendo um estalido com a língua para incitar as mulas. “Era a Praça da Inquisição, mas a malta conhece agora isto por Rocio. Chegaram a fazer-se aqui touradas e a queimar-se hereges, vejam lá vossemeceses. “ Uma rua rodeava a vasta praça do Rocio, árvores viçosas alinhadas nas extremidades, o chão num tabuleiro de calçada à portuguesa desenhada em ondas, bancos de jardim plantados perante as árvores, uma esguia coluna ao centro com a estátua de D. Pedro IV
no topo, a rica fachada do Theatro de D. Maria II ao fundo, casas a cercarem a praça, muitas de comércio, aqui a Tabacaria Mónaco, ali as Confecções Martins, acolá a Pastelaria Cardoso, mais além o Café Gelo.
Depressa a carroça deixou o Rocio para trás e meteu pela Rua Augusta, percorreram-na admirando o rico e variado comércio que a enchia de vida, de um lado a Casa dos Bordados, do outro a Sapataria Lisbonense, mais à frente a Casa Americana, entraram finalmente na faustosa Praça do Commércio e o saloio parou a carroça para que saíssem.
Agradeceram a boleia e o homem foi à sua vida, deixando-os a deambularem prazenteiramente pelo Terreiro do Paço. Admiraram o Caes das Columnas e os barcos aí 15
atracados ou a deslizarem pelo rio com as velas ao vento, contornaram a praça de olhos primeiro postos na imponente estátua equestre de D. José, “olha o cavalo preto! “, apontou o senhor Rafael às crianças, depois miraram em silêncio respeitoso os majestosos edifícios amarelos que rodeavam geometricamente o largo com as suas profundas arcadas e galerias e os torreões nas alas perpendiculares, finalmente maravilharam-se com o Arco Triunfal e a estátua em pé no topo, as mãos estendidas sobre as cabeças de duas outras estátuas mais baixas, não podiam saber mas era a Glória a coroar o Génio e o valor, a misteriosa legenda VIRTUTIBUS MAIOR por baixo, não a decifraram, não a entendiam, não conheciam latim, não sabiam sequer ler. Satisfeitos, decidiram regressar ao ponto de partida por outro caminho. Cruzaram a Rua do Arsenal e meteram pela Rua Áurea, espantaram-se com os altos armários de vidro colocados à porta da joalharia Cunha & Irmão, abastecedora da Casa Real, a exibir as suas pedras preciosas, “isto é que é uma riqueza! “, passaram pela Luvaria Gatos e salivaram diante da vitrina da Maison Parisienne, a patisserie que se gabava dos seus sorvetes “de todos os typos. “
Desembocaram novamente no Rocio. Um sol quente de Estio, que banhava a praça com violência e empurrava as gentes para as sombras protectoras, fazia realçar as cores garridas das lojas, num agradável contraste com o azul-forte e profundo do céu. Afonso estranhou o facto de andar ali pouca gente descalça, havia muitas pessoas de sapatos a circular pela praça, situação que lhe indiciava serem os lisboetas gente rica e requintada. Em vez dos barretes ribatejanos que se habituara a ver em Rio Maior, constatou que, em Lisboa, muitos homens usavam refinados chapéus na cabeça, ora cartolas, ora chapéus de coco. Além disso, balouçavam bengalas na mão e aperaltavam-se com gravatas e laços a enfeitar roupas que pareciam limpas, lá na terra apenas o doutor Barbosa, o professor Ferreira e poucos mais tinham o hábito de se apresentarem assim tão janotas.
Aqui e ali, a destoar, um rapaz descalço sobre uma mula, era um saloio, outro a carregar um barril azul aos gritos num pregão de “água fresca! “, provavelmente um galego.
Um monge magro, de sotaina negra e uma corda apertada à cintura a servir de cinto, passava por entre dois homens sentados no passeio, um com a cabeça no regaço do outro, que lhe inspeccionava o cabelo, estava ali aberta a época da caça aos piolhos. No outro lado passava um rapaz a puxar um carrinho de madeira cheio de pão, atrapalhando os perus de dois campinos ribatejanos, as aves em alvoroço em torno do carrinho e os campinos a tentarem controlá-las com os cajados. Pelo Rocio circulavam cavalos, mulas, burros, coches e carroças, viam-se rebanhos de cabras e vacas conduzidos aos cafés e botequins para fornecerem leite, mas o mais estranho era uma pequena carruagem de comboio que assentava sobre carris e era puxada por dois cavalos. As pessoas subiam para a carruagem 16