“Como vai a guerra, capitão Alphonse? “, quis saber a baronesa. “É como os jornais dizem? “
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“E o que dizem os jornais? “
“Que estamos a ganhar. “
“Não se pode acreditar sempre nos jornais... “
Agnès admirou-se.
“Estamos a perder? “
“Não, não ganhamos nem perdemos. Estamos imobilizados “ “Mas não é verdade que o inimigo recuou há alguns meses? “ Afonso sorriu.
“Lá recuar, recuou. Mas recuou por sua própria iniciativa, não fomos nós que o empurrámos.”
“Como assim?“, interrompeu o barão, a garganta aquecida pelo cognac. “Se eles recuam, é porque nós avançamos, ninguém recua porque lhe apetece.”
“O que se passou, sieur le baron, é que os boches construíram umas trincheiras melhores numa posição elevada e na retaguarda das suas trincheiras habituais e depois abandonaram as suas posições e foram instalar-se nessas trincheiras. Chamamos a essas novas posições a linha Siegfried, mas parece que os boches lhe chamam linha Hindenburg.
Seja como for, este recuo para a Siegfried significa que eles perderam uns quilómetros mas ganharam posições quase impregnáveis. “
“Então não acha que vamos ganhar a guerra? “
“Para ganhar uma guerra é preciso que ela acabe”, comentou o capitão com secura.
“E esta não vai acabar? “, quis saber Agnès.
“Não dá sinais disso. Repare que já estamos a 20 de Novembro, perto do final de 1917 portanto, a guerra dura há mais de três anos e as posições permanecem estáticas. Nem nós rompemos, nem eles se mexem.”
“O senhor é um homem de pouca fé, pelo que vejo”, comentou a francesa.
“Pelo contrário, m'dame, sou um homem de fé.“ “Pois não parece”, obser-vou ela.
“Não foi no seu país que apareceu, no mês passado, Nossa Senhora a anunciar o fim da guerra em breve?”
“Sim, já li sobre isso”, disse Afonso, inclinando-se para a sua pasta. “Até tenho aqui um jornal que me mandaram há dias com notícias sobre essa aparição, veja lá!” O capitão retirou da pasta um exemplar de O Século, uma folha gigante dobrada em duas, de modo a dar quatro páginas, e amarfanhada pelo correio, mas perfeitamente legível.
O jornal estava datado de segunda-feira, 15 de Outubro. Ou seja, trinta e cinco dias antes.
As duas colunas do lado direito da primeira página encontravam-se preenchidas, do topo à base, com um texto dedicado ao assunto, o antetítulo anunciando em caixa alta “Coisas espanto-sas!“ e o título falando em “Como o Sol bailou ao meio-dia em Fátima”. O
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subtítulo era longo. “As aparições da Virgem - Em que consistiu o sinal do céu - Muitos milhares de pessoas afirmam ter-se produzido um milagre - A guerra e a paz.” Agnès inclinou-se para melhor ver o jornal.
“Quem são?“, perguntou, apontando para uma grande fotografia por cima do texto mostrando três crianças de olhos fixos na imagem, duas raparigas de saia larga e lenço na cabeça a ensanduicharem um rapaz com um barrete, por trás um muro de pedra.
“São as crianças que dizem ter falado com a Virgem”, explicou Afonso. Leu a legenda e identificou-os, o dedo movendo-se da esquerda para a direita. “Esta chama-se Lúcia, este Francisco e esta Jacinta. “
A francesa mirou a imagem, fascinada.
“E o que viram elas exactamente? “
O capitão pôs-se a ler o texto, momentaneamente silencioso. “Bem, o repórter começa por descrever como chegou à charneca de Fátima, que viu lá muita gente, estavam todos a rezar”, disse, explicando o texto que acabara de ler. Fez mais uma pausa enquanto lia os parágrafos seguintes. “Começou a chover e as três crianças chegaram ao local meia hora antes da anunciada aparição, os fiéis ajoelharam-se na lama à sua passagem e uma das crianças, a Lúcia, pediu-lhes para fecharem os guarda-chuvas”. Nova pausa para leitura. “O
repórter diz que, à hora certa, o céu começou de repente a clarear, a chuva parou e apareceu o Sol “ Ainda mais uma pausa. “Aqui é muito interessante, ora oiçam”, exclamou Afonso, passando a traduzir o texto palavra a palavra, em voz alta. “O astro lembra uma placa de prata fosca e é possível fitar-lhe o disco sem o mínimo esforço. Não queima, não cega. Dir-se-ia estar-se reali-zando um eclipse. Mas eis que um alarido colossal se levanta e aos espectadores que se encontram mais perto se ouve gritar Milagre, milagre! Maravilha, maravilha! Aos olhos deslumbrados daquele povo, cuja atitude nos transporta aos tempos bíblicos e que, pálido de assombro, com a cabeça descoberta, encara o azul, o Sol tremeu, o Sol teve nunca vistos movimentos bruscos fora de todas as leis cósmicas - o Sol bailou, segundo a típica expressão dos camponeses. “
Afonso levantou a cabeça do jornal.
“Interessante, não? “
“Oui”, disse Agnès, fascinada, fixando a fotografia das três crianças na primeira página. “Não tem mais? “
O português retomou a leitura silenciosa do jornal e resumiu o seu conteúdo.
“Diz aqui que o repórter falou com as pessoas e nem toda a gente estava de acordo com aquilo a que todos tinham acabado de assistir. A maioria confirma ter visto um bailado do Sol, mas outros garantiram terem observado o rosto da própria Virgem e que o Sol 163
girou sobre si mesmo como uma roda de fogo-de-artifício, descendo do ponto onde se encontrava. E uns poucos asseguram que até o viram mudar de cor.
“Ilusão de óptica”, comentou o barão Redier com um sorriso condescen-dente.
“É possível”, assentiu Afonso.
“Não digam disparates”, comentou Agnès. “E as crianças? “ O capitão leu mais um pouco.
“O essencial está nesta frase que vos vou traduzir”, indicou.
“Lúcia, a que fala com a Virgem, anuncia, com gestos teatrais ao colo de um homem que a transporta de grupo em grupo, que a guerra terminará e que os nossos soldados iam regressar. “
Quando Afonso levantou a cabeça, viu Agnès recostar-se na cadeira de balanço, serena.
“Então sempre é verdade”, disse ela. “A guerra vai acabar. “
“É o que diz aqui.”
“E não acredita?”
“Que a guerra vai acabar?“, admirou-se o barão Redier, juntando-se à conversa.
“Então não há-de ele acreditar? Até eu! Nem que seja daqui a cem anos, mas que ela vai acabar, lá isso vai.“