Выбрать главу

homem sorriu, o olhar perdido no infinito. “Aaah, aquilo é que foram duas horas bem catitas! Cobraram um balúrdio por sessão, mas pensa que isso fez esmorecer a tusa do pessoal? Nem pó! Foi uma roda-viva, um ver que t'avias a vender bilhetes, era tudo à coca, a malta queria era ver os bonecos. “

“E isso já acabou? “

“Infelizmente já”, confirmou o homem com um suspiro. “Mas estive a ler no jornal que o Theatro D. Amélia vai em breve começar com sessões diárias de fotografias animadas. O electricista foi para o Porto mas tenciona voltar aqui a Lisboa e dizem que ele 19

agora não terá só coisas lá da França, vai mostrar fotografias vivas de uma tourada no Campo Pequeno, da praia de Algés, ali da Avenida da Liberdade, da Boca do Inferno, coisas com a nossa gente, sabe? De modo que anda tudo em pulgas para ver essas maravilhas.”

O senhor Rafael e a família reagiram com cepticismo a tão espantoso anúncio, pensaram mesmo que o lisboeta estava a fazer pouco de si. Como era lá possível ver fotografias a mexer? Mas o homem não se calava com as novidades e informou os ribatejanos de que, se estivessem interessados em sensações fortes, iria haver nessa tarde um interessante jogo de football.

“E o que é isso do fubôu?”, indagou Rafael Laureano, intrigado com as modernices dos citadinos.

“Football”, corrigiu o seu interlocutor, divertido por estar a explicar uma palavra inglesa a um paisano das berças. “É um jogo inglês em que se formam duas equipas de players e todos dão kiques numa bola até fazerem goal. “ O senhor Rafael não percebeu muito bem, mas ficou cheio de curiosidade. Se calhar, valia a pena ir ver esse tal fubôu para depois contar as novidades lá na taberna do Silvestre, a carroça sem cavalos já iria dar pano para mangas, aquela conversa da electricidade e das fotografias a mexer também, o mesmo se podia dizer do fenómeno de muita gente usar sapatos e andar vestida como o doutor Barbosa, pode ser que esta outra coisa alimentasse mais uma tarde de cavaqueira, que preciosa mina de assuntos para paleio sem fim se estava a revelar este passeio pela capital, que brilharete ele iria fazer com os amigos dos copos.

“Ó amigo, e onde é isso? “

“É ali no Campo Pequeno, daqui a duas horas”, disse o homem, apontando para a esquerda. “Está a ver aquela rua? É a Avenida Fontes Pereira de Mello. Meta por ali até ao Saldanha, uma grande praça que está por acolá, e depois siga por uma alameda muito larga, a Avenida Ressano Garcia, até dar com uma grande arena, à direita, uma coisa feita há pouco tempo para as touradas. Chega lá em meia hora. “

A senhora Mariana puxou o marido pelo braço.

“Rafael, então e a Ermelinda?”

“Ó filha, tem calma”, retorquiu Rafael, agastado. “A tua prima não vai a lado nenhum, não te aflijas. A gente dá o passeio e depois vamos lá ver a moça, não te apoquentes.”

Quando terminou a refeição, a família Laureano rumou tranquilamente na direcção indicada. O passeio durou quarenta minutos, até que os cinco deram com um enorme edifício circular cor de tijolo, cheio de arcadas e galerias, decorado a arabescos, cúpulas 20

duplas em azul-celeste a dominar os vários torreões de estilo neomourisco, era a praça de touros erguida no centro de um terreno maltratado. Concentrava-se ali uma pequena multidão, incluindo algumas mulheres de alta sociedade com os seus vestidos cheios, os chapéus espampanantes e as sombrinhas parisienses, rodeadas por um séquito de amigas e criados. Indagando se era ali o Campo Pequeno, o senhor Rafael obteve a confirmação.

Perante si erguia-se a praça de touros. Aproximou- se da bilheteira e verificou que a tabela de preços indicava que os bilhetes mais baratos eram os da galeria de 2. a ordem a duzentos réis cada um, e os mais caros eram os camarotes de 1. a ordem, a doze mil réis. Sentiu-se confuso e questionou um empregado.

“Ó amigo, tantos réis para ver fubôu?”

O funcionário riu-se.

“Aqui é só tourada, homem. A bola é ali “

O empregado apontou para os baldios ao lado da praça. Estendia-se ali um pedaço de terra com dois grandes rectângulos desenhados no chão, que o homem identificou como sendo os campos de jogo. Um dos rectângulos, mesmo colado à praça de touros, mostrava-se vagamente nivelado, mas o outro estava cheio de covas e buracos. Ao que parece, havia sempre ali muitos jogos e as equipas que chegassem primeiro ocupavam o rectângulo mais nivelado. Os atrasados tinham de se contentar com o que se apresentava esburacado.

A família de Rio Maior aproximou-se do rectângulo em melhor estado e não teve de esperar muito para que surgissem novidades. Dois grupos de homens apareceram pouco depois no local, cada grupo transportando pelo baldio umas enormes traves de madeira, duas mais pequenas pregadas em paralelo e unidas por uma grande trave colocada perpendicularmente numa das pontas. Cruzaram o descampado até chegarem ao rectângulo mais liso.

“São os players do Real Gymnasio Club”, explicou um mirone ao senhor Rafael.

“Vêm do Rego e trazem as balizas.

“Rafael Laureano não percebeu a explicação, mas manteve-se calado, a observar. Os homens colocaram as traves em cada extremidade do rectângulo e, inesperadamente, começaram a tirar os casacos e as gravatas. Via-se que era gente de classe alta, pelo que o seu comportamento deixou a família de Rio Maior siderada. Depois de ficarem em tronco nu, tiraram os sapatos e, cúmulo dos cúmulos, começaram a baixar as calças. A senhora Mariana reprimiu um grito púdico, tapou os olhos e virou-se de costas enquanto os filhos e o marido se encontravam paralisados e de boca aberta, tinham dificuldade em acreditar no que viam, até que explodiram em gargalhadas. Aquela gente fina, tão cheia de pruridos e 21

salamaleques, estava a despir-se em plena rua, e as damas que se encontravam na assistência limitavam-se a ocultar os olhos com os seus leques floridos. Os recém-chegados ficaram todos momentaneamente de cuecas até vestirem umas calças apertadas e curtas, como se fossem calças de cavaleiros com a bainha pelos joelhos. Colocaram sobre o tronco umas camisolas coloridas e calçaram umas meias altas e uns tamancos escuros. Um deles tirou uma bola castanha de um saco e foram todos a correr para dentro do rectângulo aos pontapés à bola. Instantes mais tarde apareceram de bicicleta outros homens que repetiram por detrás da segunda baliza o ritual de se despirem e vestirem, amontoando a roupa junto às traves antes de entrarem igualmente no terreno.

“É o Football Club Lisbonense”, anunciou o mirone, intimamente divertido com a reacção dos parolos que o escutavam.

Estes gajos são muito bons, até agora só perderam uma única vez, há três anos, contra uma equipa de ingleses, e, mesmo assim apenas por um goal.

Agarrado às calças do pai, o pequeno Afonso reteve na memória o que se passou a seguir. Os dois grupos tinham camisolas de cores diferentes e desataram todos a correr loucamente pelo campo a dar pontapés na bola, perante o clamor excitado dos espectadores e a vigilância de um homem vestido com um elegante fato e gravata de tweed que corria entre eles a dar ordens.

“É o referee”, esclareceu o mesmo mirone.

As regras eram simples. Tornou-se claro aos visitantes de Rio Maior que só os dois homens que se encontravam nas balizas podiam pegar na bola com as mãos, todos os outros apenas estavam autorizados a dar pontapés. Havia alguns que eram muito loiros ou ruivos, tratava-se de ingleses misturados nas duas equipas. Por vezes zangavam-se todos, gritavam, gesticulavam, empurravam-se, o jogo parava, entravam espectadores no rectângulo para participarem na discussão, o sururu crescia para depois acalmar, os jogadores e o homem engravatado de fato de tweed empurravam toda a gente para fora do campo e logo tudo recomeçava. Uma vez por outra, a bola entrava numa baliza, ouvia-se uma grande gritaria e aplausos entre os espectadores e alguns dos jogadores saltavam de alegria e abraçavam-se efusivamente.