“Que categoria de gaja! “, disse Baltazar, voltando-se para a mesa. Sorveu um golo de cerveja, pousou a caneca pesadamente na mesa e arrotou. “Hoje temos de ir às buscates.”
“Ó Baltazar, já não tens idade p'ra isso”, devolveu Vicente Manápulas. “E, além disso, tás ferido, tens de descansar. “
Baltazar passou a mão pelo penso que lhe enfeitava a orelha. “Eu estou ferido na orelha, não no saçarugo”, retorquiu, apontando para entre as pernas.
“Camano, eu tou arrasado”, queixou-se Vicente. “Passámos a manhã na porra dos trabalhos de fortificação e a tarde c'as marchas e a instrução de baionetas, lá c'aquela merda das estocadas contra sacos suspensos e sacos no chão, mais aqueles exercícios todos de coronhadas, joelhadas, rasteiras e cabeçadas, de modo que tou que nem posso. “
“Mau, não te armes em rabeta”, advertiu Baltazar. “A melhor maneira de recuperar dessa estafa é dar uma grande pirocada. “
“O qu'é qu'achas? “, perguntou Vicente a Matias Grande.
De olhos fixos e melancolicamente perdidos no amarelo-turvo da blanche que segurava entre as mãos, o enorme homem de Palmeira mostrava- se distante e sorumbático.
Não conseguia conformar-se com a morte de Daniel, o amigo de infância, e a imagem do corpo e da cabeça a tombarem do céu assombrava os seus pesadelos desde o combate da semana anterior. Saíra já das trincheiras mas era como se ainda lá estivesse, martelando o episódio vezes e vezes sem conta, angustiado e invadido de incontroláveis sentimentos de culpa, pensando que deviam ter abandonado mais cedo a linha da frente, ou então alguns segundos mais tarde, imaginando a carta que iria pedir ao sargento para escrever à mulher do Beato, repisando as palavras, as ideias, os sentimentos, a revolta, a resignação, a tristeza.
Matias olhou para Vicente, parecendo despertar de um sonho longínquo.
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“Hã? “
“O qu'é qu'achas? “
“ O que é que eu acho de quê?”
“D'irmos às buscates, homem”, disse Vicente, impaciente. “Estás a dormir ou quê? “
“Irmos às buscates? “, interrogou-se Matias, como se se tratasse de uma ideia extraordinária. Parecia apalermado e levou um segundo a reflectir. “Vamos lá. “
“Então está decidido! “, exclamou Baltazar, batendo com a palma da mão na mesa de madeira. “Vamos às buscates! “
“Alguém tem til que me empreste? “, perguntou Abel, meio ensonado com o efeito das cervejas. “Sem til não posso chafurdar naquelas breixas. “
“Eu tenho til, Lingrinhas, está descansado”, disse Baltazar, exibindo umas notas de francos. “Carradas de moni” Voltou-se para Matias. “Desde a porrada do outro dia que andas abatido, homem. Levaste um louvor de categoria, foste promovido a primeiro-cabo, o que é que queres mais? “
“Estou-me a cagar para o louvor e para a promoção”, exclamou Matias, erguendo-se e deixando algumas moedas na mesa para pagar as suas duas cervejas. “Vamos embora.
O grupo levantou-se e saiu do estaminet, metendo pela rua suja e lamacenta em direcção ao bordel de Merville.
“Mas, ó Matias, a promoção não é má, sempre ganhas mais uns carcanhóis. “
“Ganho uma merda!”
“Não são vinte francos? “
“São. “
“Então sempre é melhor do que nós, caraças. A malta continua nos quinze e a verdade é que também arriscámos o pêlo.“
Matias encolheu os ombros e, arrastando Abel consigo, foi urinar junto a uma árvore, na berma. Os outros dois companheiros adiantaram-se um pouco. Baltazar pôs-se a cantar
“Ó amen doeira! Que é da tua rama? “, mas Vicente interrompeu os berros estridentes e desafinados.
“Cala-te”, vociferou. “Estás a dar espectáculo.“
“O que é que tu queres, ó Manápulas? “, devolveu Baltazar.
“Estás nervoso por causa das mademoiselles que vamos comer? “
“Cala-te. “
“Já sei, Manápulas, o teu problema é que vais ter uma mulher de categoria e tu preferes dar à mão! “, disse Baltazar, com uma gargalhada grosseira. O Manápolas prefere a manápola. “
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“Cala-te, tás bêbado! “
Baltazar calou-se. Matias e Abel juntaram-se-lhes e o grupo seguiu em silêncio pela rua, os quatro a fintarem as poças de lama espalhadas pela via, as fardas a arrastarem as pontas pelo chão, enormes. Eram uniformes confeccio-nados para soldados ingleses, mais altos, e que nos portugueses se mostravam ridiculamente grandes, as mangas quase a taparem as mãos, as bainhas das calças a nadarem na lama, verdadeiros anões em trajos de gigantes. Apenas Matias Silva, o homenzarrão cuja estatura elevada lhe valia merecidamente a alcunha de Grande, parecia feito à medida daquele uniforme.
O bordel ficava numa esquina da avenida principal de Merville, para onde se dirigiram com vagar. A um quarteirão da avenida viram um rapazinho sentado num muro frente a uma casa com um buraco na parede lateral.
“Msieurs!“, chamou o rapaz. “Voulez-vous ma soeur? Very good jig- a-jig.
Demoiselle very cheap. Very good.“
O francesinho tinha uns dez anos de idade e, claramente, com a sua mistura de inglês e francês, confundia os soldados portugueses com tommies ingleses.
“O qu'é que quer o miúdo? “, perguntou Vicente a Baltazar. “Está a oferecer a irmã”, explicou o veterano, estacando e olhando para o rapaz francês. “Coucher avec mademoiselle? “
“Oui sieur, très jolie, très bon marché. “
“Combien? “
“Cinc francs. “
“É barato”, comentou Baltazar para os amigos. “Cobra-nos cinco francos pela irmã.
“
“E é mesmo irmã dele? “, admirou-se Abel Lingrinhas. “Sei lá!”, exclamou Baltazar, encolhendo os ombros. “Devem ser refugiados belgas. “
“Vamos embora”, disse Matias.
“Tem calma, espera lá um pouco”, retorquiu Baltazar, voltando-se para o rapaz e querendo saber onde se encontrava a irmã. “Où est mademoiselle? “ O francês, que se calhar era belga, saltou do muro e cruzou a rua.
“Venez! “, disse, entrando no quintal de uma casa baixa do outro lado da rua e fazendo-lhes sinal para o seguirem.
Os portugueses entreolharam-se e, com um passo lento e hesitante, foram atrás dele.
Chegaram à casa, na verdade umas ruínas já sem telhado, e encontraram o rapaz à sua espera no fundo de umas escadas, à porta do que parecia ser uma cave com acesso exterior.
Desceram as escadas e o adolescente convidou-os a entrarem. Estava escuro na cave, mas 222
depressa se aperceberam de uma vela acesa no canto. Entraram e viram uma rapariga sentada sobre um pano largo, uma almofada ao lado, utensílios de cozinha num outro canto da cave.
“Cinc francs pour ma soeur”, repetiu o rapaz, exibindo os cinco dedos da mão.
Os quatro portugueses olharam para a rapariga, escanzelada e magra, que os fitava com algum nervosismo, os olhos cansados saltando de um soldado para o outro.
“Promenade avec moi?
“Esta miúda não tem mais de catorze anos”, comentou Matias em voz baixa, abanando a cabeça.
“É quase a idade da minha filha”, observou Baltazar, sem tirar os olhos da rapariga.
O pequeno tamanho dos seios juvenis não lhe passou despercebido. “Vocês já viram as catrinas dela? Parecem umas bolotas!”
Matias Grande aproximou-se, pôs a mão no bolso, tirou umas moedas e deu-as à rapariga, que guardou o dinheiro e começou a despir-se.
“Vais dar-lh'uma pinadela? “, perguntou Vicente. “Estás maluco? “, devolveu Matias, dando meia-volta e saindo da cave. “Vamos embora. “