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Olharam-se de forma cúmplice, divertidos com a reacção de Tim perante o estranho quadro e a sua precipitada retirada para o quarto, mas o olhar prolon-gou-se e, embaraçados, Afonso e Agnès passearam os olhos pela sala, procu-rando novos motivos de interesse. Estava fora de causa continuarem a prestar atenção à original pintura de Delaunay e ambos tiveram de se contentar em ficar a observar as chamas a crepitar na lareira, o lume mostrando-se já muito brando, lambendo com suavidade a lenha carbonizada que se amontoava numa amálgama negra e quente, as pequenas labaredas incandescentes isoladas naquela massa inerte como gotas de lava a brilharem sobre o carvão, como lágrimas de ouro choradas pela madeira no seu derradeiro sopro de vida.

“Adoro conversar”, disse ela finalmente, recomeçando a balouçar na cadeira. “O meu marido é um homem de poucas palavras, o que me deixa frustrada, e a vossa presença aqui constitui um raio de luz que ilumina a minha solidão”

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“Quem a ouvisse diria que é infeliz”, comentou Afonso. O capitão levantou-se do canapé e aproximou-se da lareira, voltando-se de costas para a sua anfitriã, não a queria enfrentar, sentia-se acanhado e inibido. Pegou na vara de ferro e empurrou a lenha para junto do cascalho, espevitando a chama moribunda. Algumas fagulhas voaram pelo ar, soltando estalidos secos, e as labaredas cresceram com fulgor, atrevidas e orgulhosas.

“Ça vous amuse, le feu...“, observou a baronesa. “Oui, vraiment. “

“Nos tempos de Luís XVI havia um estilo delicioso de cultivar o convívio”, suspirou Agnès. “As pessoas tinham nessa altura o elegante hábito de enviarem convites onde se escrevia simplesmente on causera', iremos conversar. “

Afonso remexeu de novo a lenha, reactivando definitivamente a lareira. O fogo voltou com fulgor moderado. O capitão recuou a cabeça, admirando a sua obra. Dando-se finalmente por satisfeito, limpou as mãos com umas palmadas rápidas e poeirentas, ergueu-se e sentou-se outra vez no canapé de faia.

“Não respondeu à minha pergunta... “

“ Qual?”

“Sente-se infeliz? “

“Não é bem infeliz”, explicou a baronesa, pensativa. “Sinto-me só, vazia, desacompanhada. Tenho saudades de Paris. “ “Viveu em Paris? “

“Oui. “

“E então o que está aqui a fazer? “

“É uma longa história. “

“Gosto de histórias longas. “

“Quer mesmo ouvir? “

“Não estou aqui para outra coisa. “

A baronesa sorriu.

“Saiba, mon chère Alphonse, que eu nasci em Lille”, disse. Em dez minutos contou-lhe a história da sua infância e todos os pormenores sobre a família, a loja de vinhos do pai, Serge e o barão Redier. Neste ponto, Afonso constatou que Agnès o observava, hesitante, como se estivesse a considerar se valia ou não a pena acrescentar mais uma coisa. Decidiu-se.

“Sabe que ele era parecido consigo? “

“Quem? “ “ Serge. “

“Ah sim? “, surpreendeu-se Afonso.

“É o olhar, é o sorriso, mas não só, há mais qualquer coisa em si que me lembra Serge, não sei, talvez um certo espírito, uma certa maneira de estar, esse ar sonhador”, 233

disse. Ficou fixada no português, de ar contemplativo, os olhos verdes com um brilho intenso. “E você, alguma vez casou? “

“Non”, disse, abanando a cabeça.

“Nem tem ninguém à sua espera?“, inquiriu. “ Une petite amie peut-être?“

“Non. “

Agnès voltou a baixar os olhos.

“Sabe, eu, na verdade, casei com Jacques porque me sentia só, desam-parada, e ele tinha aparecido quando eu mais precisava, estendendo-me a mão naquele momento de maior fragilidade, quando o mundo desabara e deixara de fazer sentido. Ele foi o farol que me guiou na tormenta, a luz que me trouxe até porto seguro. Feitas as contas, casei, se quiser, por gratidão. “ Fez uma pausa. “Foi um erro.“

“Hoje teria feito de maneira diferente? “

“Sim, sem dúvida. Se fosse hoje, ficava em Paris e acabava o curso, custasse o que custasse “ Suspirou. “Mas a vida é como é e as decisões, bem ou mal, foram já tomadas. “

“Pelo que me diz, devo presumir que não tem nenhum amor na sua vida.“

“Engana-se. Tenho um grande amor. “

“Tem?”

“Sim. A medicina.“

“Ah, está bem”, exclamou Afonso, aliviado.

“Sabe o que me fascina na medicina? “

“Não.“

Agnès ergueu dois dedos.

“São essencialmente duas coisas”, indicou. “Em primeiro lugar, e como lhe disse, desde criança que tenho um fascínio por Florence Nightingale, acho uma coisa extraordinária ajudar os outros na doença, atenuar-lhes o sofrimento. Isso direccionou-me para o campo da saúde. Em segundo lugar, acho que pesou muito o gosto pela ciência que adquiri quando visitei a Exposição Universal de Paris em 1900. “

“Já vi que gosta do aspecto científico da medicina... “ A baronesa fez um ar pensativo.

“Sim, é isso. Apesar de ser uma pessoa moderadamente religiosa, sei que, na vida, não podemos estar sempre à espera do auxílio divino, Deus ajuda quem se ajuda a si próprio. Aqueles que percebem isso não entendem nada da vida. O que é facto é que, durante muito tempo, os nossos antepassados não compreendiam essa simples verdade e foram muito penalizados pelo excesso de confiança na intervenção divina. Sabe, Alphonse, antigamente a medicina esteve associada à superstição, os antigos acreditavam que os males 234

eram causados por espíritos malignos. No Neolítico, por exemplo, chegavam a fazer buracos no crânio dos pacientes para expulsarem esses espíritos, veja lá “

“E curavam-nos? “

Agnès riu-se.

“Claro que não. Com esses métodos, mon chère Alphonse, é evidente que os doentes morriam da cura, não do mal. Mas depois, passado este período rudimentar, a ciência começou gradual mente a entrar em campo. A par dos feitiços surgiram procedimentos pragmáticos e racionais para tratar de doenças facilmente diagnosticáveis ou para prevenir o aparecimento de outros males. A Bíblia, por exemplo, está repleta de instruções quanto à higiene, quanto à neces-sidade de manter doentes de quarentena e quanto à obrigação de desinfectar os objectos tocados pelos doentes. Mas o grande passo, a ruptura da medicina com a religião e a superstição, foi dado na Grécia. Presumo que, com os seus estudos clássicos, saiba o que aconteceu neste período... “

“Em relação à medicina, infelizmente conheço pouca coisa. Lembro-me de que os filósofos gregos consideravam que os doentes eram vítimas de desequi-líbrios do corpo. “

“Pois, os gregos trouxeram realmente uma postura nova. As mais famosas escolas de medicina da Grécia localizavam- se em Knidos e em Kos. Foi em Kos que nasceu Hipócrates, considerado o primeiro médico moderno. “

“O do juramento?”

“Sim, o autor do famoso texto de ética médica conhecido por juramento de Hipócrates. É claro que os gregos diziam muitos disparates. Por exemplo, achavam que a saúde resultava fundamentalmente de um equilíbrio entre quatro humores presentes no corpo humano, designadamente o sangue, a fleuma, a bílis negra e a bílis amarela. Como resultado, os tratamentos que prescreviam limitavam-se a dietas, a vómitos forçados e a sangramentos, procedimentos efectuados supostamente para reequilibrar os humores do corpo. Doen-tio, não acha? “