Выбрать главу

“Mas olhe que ainda há pouco tempo se faziam esses tratamentos. O meu pai contou-me que, quando era pequeno, o sangravam sempre que estava doente. Diziam que era para reequilibrar os humores e eliminar os venenos. “

“Sim, os tratamentos prescritos pelos gregos mantiveram-se válidos até ao século passado, veja bem, embora no século xvIII estas ideias começassem a ser revistas. “

“Portanto, nem com os gregos a medicina evoluiu... “ “Não”, disse Agnès, abanando a cabeça. “A medicina evoluiu com os gregos, uma vez que foi aí que, pela primeira vez, se estabeleceu que as doenças não resultavam de aconteci-mentos sobrenaturais, mas tinham uma explicação física. Até esse tempo, os doentes eram encarados como pecadores punidos 235

pelos deuses ou como gente possuída por demónios, ideia que os gregos combateram. O

problema é que a medicina entrou em retrocesso na Idade Média, vitimada pelo obscurantismo de que o meu antigo professor de Anatomia não se cansava de falar. Os textos gregos foram levados para o mundo árabe e só regressaram ao Ocidente pela mão dos monges beneditinos, que traduziram para latim os documentos árabes e assim tomaram conhecimento do que Hipócrates e os outros médicos gregos escreveram. O atraso foi tanto que só no século xII nasceram as escolas de medicina e foi preciso esperar pelo Renascimento para finalmente se começar a estudar o corpo humano. E aí, sim, houve de facto uma grande evolução. Descobriu-se que as doenças eram causadas por microorganismos, percebeu-se que o sangue circulava, enfim, o corpo humano e os seus funcionamentos e patologias tornaram-se mais compreensíveis”

“Descartes escreveu que o corpo funcionava como uma máquina...”

“Justamente, Alphonse, o corpo começou a ser visto como um sistema. Os médicos descobriram o sistema digestivo, o sistema metabólico, o sistema sanguíneo, o sistema respiratório, o sistema nervoso. Além disso, apareceu a química, os médicos começaram a usar químicos para reequilibrarem os sistemas. Surgiram também as especialidades, como a neurologia, a patologia e outras. Depois, com o meu conterrâneo de Lille, Louis Pasteur, vieram as vacinas e a ciência tomou totalmente conta da medicina, acabando de vez com as feitiçarias do passado. “

“Estou impressionado”, exclamou Afonso com sincera admiração. “Já vi que conhece bem a história da medicina “

“Tenho obrigação”, sorriu Agnès. “Sempre foram três anos na Sorbonne, não é?

Alguma coisa tinha de aprender. “

“E qual é a sua especialidade? “

“Bem, eu quando andava na faculdade não tinha ainda entrado nas especialidades, estava na área geral. Mas confesso que me sentia tentada a ir para a psicanálise “

“Psicanálise? “

“É uma área nova, desenvolvida por Freud. Já ouviu falar? “

“Vagamente. É um hipnotizador, não é? “

Agnès riu-se.

“Sim, ele utilizou a hipnose na terapia, mas já se deixou dessas coisas. “

“Desculpe, mas isso não lembra ao diabo! Como é que um médico espera curar uma febre com hipnose? “

A francesa voltou a rir-se.

“Não, Alphonse, Freud não trata doenças do corpo. Ele trata as doenças da mente. “ 236

“Dos loucos? “

“Sim, também dos loucos, mas não só, há igualmente pessoas com perturbações ou traumas, casos a que a medicina não tem conseguido dar resposta. Pois Freud descobriu que muitos males da mente nascem de traumas ocorridos no passado e que, se a pessoa conseguir resolver esses traumas, curar-se-á. O problema é que muita gente não tem consciência dos traumas que sofreu, uma vez que eles são reprimidos e atirados para o inconsciente, pelo que o trabalho do médico é o de localizar esses traumas para os resolver.

Freud começou por usar a hipnose, mas agora voltou-se para outros métodos, como a associação de ideias e a interpretação dos sonhos.“

“Ele também acredita que os sonhos são profecias?“ “Não, é exactamente o contrário. Ele acha que os sonhos não revelam o que vai acontecer no futuro, mas o que as pessoas gostariam que acontecesse no futuro. Percebe a ideia? Os sonhos revelam- nos o que as nossas instâncias censoras nos ocultam. Por exemplo, vamos imaginar que você gosta muito de uma mulher e sonha que está a fazer amor com ela.” Afonso corou. “O seu sonho não é uma profecia, ele não revela que você vai fazer amor com essa mulher. O que ele revela é que você gostaria de fazer amor com ela. Quando está acordado, e tratando-se de uma pessoa com decoro, evita imaginar essa situação. Isso significa que a sua consciência reprime tal desejo. Mas, no momento em que você está a dormir, a consciência também dorme e é o subconsciente que toma conta da sua mente. O subconsciente sabe que você gostaria de fazer amor com essa mulher. Ora, como a consciência já não está activa para censurar esse desejo, o subconsciente manifesta-o através do sonho.

Entendeu?”

“Bem... uh... sim”, titubeou Afonso, embaraçado com o exemplo.

Agnès sorriu.

“Vejo que o meu exemplo o deixou um pouco... como direi? um pouco constrangido”, comentou ela com malícia.

“Uh... enfim, não estou habituado a ouvir... a ouvir uma senhora... enfim...“

“Está a ver? A sua instância censora encontra-se muito activa” observou Agnès alegremente. “Não se preocupe, isso só mostra que você é um homem decente, muito civilizado. “

“Enfim... “, soltou Afonso com alívio, o elogio soube-lhe bem. “Mas deixe-me que lhe diga”, apressou-se Agnès a acrescentar, divertida por saber que o ia chocar de novo. “O

sexo é um elemento crucial no comportamento dos homens e das mulheres, sabia? “ Afonso abanou a cabeça, pasmado, incapaz já de emitir nem que fosse um grunhido.

“Freud descobriu que a sexualidade constitui um factor dominante e ocupa um lugar 237

central em toda a experiência humana. Ele verificou que as pessoas têm comportamentos sexuais desde que são bebés, o que... “

“Isso não pode ser”, atalhou Afonso, recuperando a fala. “Os bebés?”

“Compreendo a sua incredulidade, muita gente reage assim, mas a verdade é que já os bebés manifestam sexualidade. Nunca ouviu falar no complexo de Édipo? “

“Não. “

“Existe um mito grego que conta a história de um homem Édipo, que, sem querer, cumpriu uma profecia antiga, matando o pai e casando com a mãe. Ora Freud acha que todos os homens gostariam de fazer o mesmo, matar o pai e casar... “

“Ah, desculpe, m'dame, mas isso é ir longe de mais. Faz algum sentido essa ideia? No que me diz respeito, é um perfeito disparate dizer que eu quero matar o meu pai e casar com a minha mãe, isso é realmente... não sei, mas não é aceitável. “

“O complexo de Édipo é uma metáfora, Alphonse, e assim deve ser entendido. O

que Freud quer dizer com isto é que os homens têm desejos sexuais inconscientes que remontam à infância, desejos de casarem com a mãe, não porque ela é a mãe, naturalmente, mas porque ela é a fêmea que conhecem. Para casarem com ela, porém, os homens têm de eliminar o seu rival. E quem é ele? É o homem que está com a fêmea que eles desejam. É o pai.“

“Mas está a dizer que eu tenho esse desejo? “

“Calma, não o estou a acusar de nada”, sorriu Agnès. “Sei que você é um homem muito íntegro, um homem até muito interessante. Mas o que eu estou a dizer é que Freud identificou esse desejo inconsciente, repito, inconsciente, no comportamento masculino.