“Florence Nightingale?”, admirou-se uma vez madame Chenu, uma amiga da mãe, quando a ouviu citar a sua heroína. “Ora ora, se gosta tanto de ajudar os outros, a menina devia era seguir os passos do grande herói de Lille.”
“Lydéric?”, interrogou-se Agnès, hesitante.
Madame Chenu riu-se.
“Lydéric? Não, ma petite, esse já lá vai. Estou a falar do nosso Pasteur, o grande Pasteur, que Deus o tenha. Esse, sim, é um exemplo, deve ser imitado.” Foi a primeira vez que Agnès ouviu falar no recentemente falecido herói da cidade.
Louis Pasteur era oriundo da região e foi em Lille que desenvolveu as investigações que o tornariam célebre. Descobriu o papel dos microorga-nismos na fermentação e desenvolveu a pasteurização para combater esse processo. Mais importante, inventou as vacinas e demonstrou a importância da higiene nos hospitais como modo de controlar a alta taxa de mortalidade entre os doentes internados. Todo esse trabalho, desenvolvido sobretudo na década anterior, atraiu uma enorme atenção sobre este cientista francês, tornando-o o mais famoso filho de Lille e o orgulho da cidade.
Com a medicina vagamente em mente, Agnès começou aos nove anos a frequentar o liceu católico para raparigas. Magra como um palito, um sorriso luminoso e os traços do rosto bem desenhados, a pequena depressa se fundiu na multidão homogénea de meninas com batas. No primeiro dia levou Mignonne para as aulas, mas a professora, uma freira austera e ríspida, depressa lhe tornou claro que não apreciava a ideia. A meio de uma lição, a irmã Pezard calou-se bruscamente e aproximou-se da carteira de Agnès com ar severo.
“O que é isto? “, perguntou a freira, pegando na boneca.
26
“É Mignonne, soeur”, informou-a Agnès com timidez. “É a minha amiga. “ A professora ignorou a resposta.
“Não se admitem aqui bonecas. A menina já tem idade para se deixar de criancices. “ Deu meia-volta e regressou para a sua secretária com Mignonne na mão. “Venha buscar a boneca quando as aulas terminarem, e, atenção, não a quero voltar a ver por cá”.
Agnès ganhou um medo terrível a soeur Pezard, mas o incidente serviu para lhe fazer perceber que a infância teria de ficar à porta do liceu. As brincadeiras e conversas com a boneca de cartão e madeira foram assim reservadas para a noite, em particular para os instantes antes de adormecer. Agnès deixou naturalmente de acreditar que Mignonne a ouvia, embora permanecesse afeiçoada à boneca e falasse com ela como quem escreve num diário, era uma maneira de fazer o balanço do dia e estruturar verbalmente o que aprendera e tudo o que vira. A segunda filha do casal Cheval ier cresceu viçosa, mais parecida com a avó paterna, já falecida, do que com a mãe, os cabelos aloirados a acastanharem em caracóis vistosos, os olhos de um verde-vivo e intenso, talvez uma mistura do azul do pai com o castanho da mãe.
Foi nesta idade que Agnès guardou a sua mais extraordinária e mágica memória de infância. O pai adorava falar de Paris, e em particular de uma torre gigantesca que para lá tinha sido construída, tema frequente das conversas no Château du Vin. Os clientes da loja que tinham assistido à inauguração da torre, dois anos antes do nascimento de Agnès, dividiam-se quanto à importância daquela obra e expunham os seus argumentos em intensas e acaloradas discussões. Sentada num canto da loja, Agnès ouvia-os em silêncio, mas com atenção. Uns diziam que era um monstro, uma chaminé de ferro, um disparate sem igual, um insulto à arquitectura de Paris, até uma ameaça à segurança das pessoas, as leis da gravidade tornavam evidente que tal tumor metálico iria inevitavelmente tombar. O
alfaiate Aubier afirmava mesmo, s arcástico, que o sítio onde mais gostava de estar quando visitava Paris era na torre, justamente porque era esse o único local da cidade onde não teria de a ver. Em boa verdade, este dito espirituoso não era da sua autoria, Aubier tinha lido uma coisa do género num jornal, atribuída a Guy de Maupassant, mas nas conversas com os amigos a frase produzia bom efeito e ele não se importava de a fazer passar por sua.
Outros clientes, porém, gabavam com entusiasmo a monumentalidade e engenhosidade da obra, que consideravam a prova de que a engenharia francesa era a melhor do mundo. A torre foi apresentada ao público na Exposição Universal de 1889, constituindo um tributo à industrialização da França e um marco para assinalar o centenário da Revolução Francesa, ao mesmo tempo que gerava um aceso debate público 27
nos jornais e suscitava acérrima oposição de arquitectos e artistas. Em bom rigor, a obra era tão polémica que todos a queriam ver. Paul Chevallier, como qualquer francês que se prezasse, acompanhou o debate à distância mas não pôde na altura visitar a Exposição e ver a célebre torre para julgar por si mesmo. Só mais tarde teve oportunidade de o fazer, durante as várias viagens a Paris a que os compromissos profissionais o obrigavam para comercializar a produção vinícola. Ia sempre sozinho e, no regresso, não se coibia de louvar em casa a grandiosidade da obra.
Por decisão de Luís Napoleão, a França acolhia uma grande exposição universal todas as décadas, com intervalos que não podiam exceder os doze anos, de modo que o certame seguinte em Paris ficou marcado para 1900. Numa manhã da Primavera desse ano, ao pequeno- almoço, e por entre dois croissants, Paul Chevallier fez perante a família um anúncio solene.
“Está decidido”, disse. “Este ano vamos à Exposição Universal de Paris “ Foi uma excitação lá em casa. Muitas das colegas de Agnès no liceu iriam de propósito a Paris com os pais para visitarem a Exposição, e os que não tinham planos para tal mostravam-se desesperados ante a perspectiva de perderem o grande acontecimento do ano. Os filhos de Paul passaram semanas a falar do assunto, pedindo, implorando, ameaçando, até chorando, quando finalmente conseguiram naquela manhã arrancar do pai o compromisso de que iriam à Exposição. Não é que Paul e Michelle fizessem um grande sacrifício, na verdade sentiam-se ambos igualmente ansiosos por visitar Paris e participar no grande evento, todos os seus amigos lá iriam e era impensável que os Chevallier ficassem para trás.
A família chegou à Gare du Nord num final de manhã de Maio. Os seis apanharam um coche com destino ao hotel, no centro da cidade. Mal o coche começou a andar, atingiram uma lomba e viram a silhueta esguia da Torre Eiffel erguer-se no horizonte, um
“oh” excitado e admirativo reverberou entre as crianças, já tinham visto a imagem da polémica torre nos jornais e em postais da Exposição de 1889, mas vê-la assim ao vivo era coisa única e de admirar, que construção tão extraordinária e maravilhosa, tudo ferro e engenho, o verdadeiro triunfo da indústria. Na planície parisiense apenas o vulto branco do Sacré Coeur parecia desafiar aquele gigante de ferro, mas a catedral de Deus perdia na comparação com a basílica de Eiffel, sem dúvida era esta torre um indício da arrogância do homem no seu crescimento para os domínios celestes, o sinal inequívoco da superioridade da ciência sobre a superstição, a prova final do domínio da luz sobre as trevas obscurantistas.