Era a manhã do dia 6 de Dezembro, Afonso e Infantaria 8 tinham regressado às posições de Neuve Chapelle na noite anterior. O frio revelava-se cortante, e, se as coisas já assim se apresentavam no princípio do mês, como seria em Janeiro e Fevereiro? Encostado ao parapeito interior da linha B, os pensamentos do capitão dividiam-se entre o esforço para se proteger do gelo que lhe penetrava pelo dólman e o desejo de se refugiar no calor da memória ardente de Agnès e no universo de fantasia que construía na sua alma apaixonada, antecipando os novos encontros que adivinhava depois desta semana nas trincheiras. Tirou do bolso a cigarreira prateada que a baronesa lhe oferecera na emoção da despedida, colocou distraidamente um Kiami! nos lábios e acendeu-o, sempre mergulhado nos seus pensamentos, procurando encontrar no acre fumo do cigarro o doce cheiro da boca da baronesa, o aroma perfumado de L'heure bleue. Tão absorto estava que só se 244
apercebeu da aproximação do tenente Timothy Cook quando o oficial inglês de ligação o cumprimentou.
“What ho, Afonso, old boy? “
O capitão regressou das nuvens e olhou para o recém-chegado. “ Hã “, exclamou.
“Ah, olá Tim. “
“ What up “, perguntou Cook, querendo saber quais as novidades.
“Nada. Tudo na mesma como a lesma. “
“ Então qual o motivo de toda a comoção?”, perguntou o tenente inglês no seu português britanicamente abrasileirado.
“Comoção? Qual comoção? “
“A que ali vai, na line. “
“ O que é que se passa na linha “
“Não sei, me diga você. Vi um ajuntamento à porta do posto de sinaleiros, em Dreadnought Post. “
“Ah sim? Quando “
“Agora mesmo, passei por lá e estava a maior confusão. “ Afonso fitou Cook com ar interrogativo.
“Não sei de nada”, disse. “Espera aí que eu vou lá ver o que é “ O capitão percorreu com Joaquim a linha B, chegou à linha de comunicação, Jock Street, virou à esquerda e meteu pela Winchester Road, apanhou a linha C, seguiu para a direita e foi ter ao posto de sinaleiros de Dreadnought, um buraco aberto entre sacos de areia. Ao aproximar-se, apercebeu-se de que havia, de facto, um burburinho no local.
“O que se passa? “, perguntou ao tenente Curado, que se quedava à porta, rodeado de oficiais excitados.
“Uma revolução, meu capitão.”
“Uma revolução? Que revolução? “
“Em Portugal, meu capitão. O Bernardino e o Afonso Costa foram à vida “
“Que história é essa? “
“É como lhe digo, meu capitão. Houve uma revolução em Portugal. “ Afonso penetrou no posto, onde todos falavam animadamente, era a maior algazarra, abriu espaço entre os excitados oficiais e foi ter com o telegrafista.
“Conta lá o que é que está a acontecer. “
O telegrafista, um alferes de nariz protuberante, olhou-o, desanimado, era a vigésima vez que lhe faziam a mesma pergunta, todos queriam saber o que se passava, quais as 245
informações que chegavam por telegrafia, e ele já se cansara de repetir a mesma lengalenga.
Suspirou e decidiu ser sucinto.
“Sei pouca coisa, meu capitão. Apenas a informação de que houve ontem uma revolução e que há combates nas ruas de Lisboa.”
“Disseram-me ali à porta que o presidente da República e o primeiro- ministro tinham sido derrubados. “
“Tanto quanto sei, isso não se confirma, é apenas especulação. Se há combates, julgo que isso significa que a coisa ainda não está decidida. “
“E quem é que está a encabeçar esse golpe? “
“Um tal de major Paes. “
“Major Paes? Quem é esse? “
“Não sei, meu capitão. “
O tenente Pinto, o seu maior amigo dentro de Infantaria 8, apareceu por entre outros dois oficiais, o cabelo ruivo despenteado, como se tivesse acabado de acordar, e pôs-lhe a mão no ombro.
“Então Afonso? Se calhar, vamos para casa. “
“Olá, Cenoura. Eu acho é que, afinal, estamos no sítio errado. A guerra é em Portugal, não aqui. “
“É, andam lá aos tiros. “
“Quem é esse major Paes? “
“Olha, disseram-me há pouco que é um gajo do Exército que há uns anos esteve no governo e depois foi para nosso ministro em Berlim. “
Afonso arregalou os olhos, identificando o nome. “Aaaaah, o Sidónio Paes! “
“Esse mesmo”, confirmou Pinto. “Conheces o tipo? “ “Só dos jornais”, explicou o capitão.
“E então? “
“Se ele ganhar, é como tu dizes, parece-me que podemos ir fazendo as malas e preparar-nos para irmos para casa. “
“Foi isso mesmo que me disseram. O gajo é monárquico?“ “Isso querias tu”, sorriu Afonso, largamente conhecedor da costela monárquica do tenente Pinto. “Tanto quanto eu sei, o Paes é republicano, está ligado ao Partido Unio-nista. Lembro-me de que até integrou os primeiros governos da República.“
“Mas é contra a guerra... “
“Acho que sim. Ele estava em Berlim quando os boches nos declararam a guerra, fartava-se de elogiar aqueles cabrões e, do que sei, não gostou da nossa vinda aqui para a 246
Flandres “ Calou-se, pensativo. “Vais ver que a Virgem de Fátima sempre tinha razão, vamos mesmo mais cedo para casa. “
O capitão Resende, já menos gordo desde que havia duas semanas se sujeitara à recepção ao caloiro, abraçou os dois ho mens, efusivo.
“Vamos para casa, caraças! “
“Aguenta lá os cavalos, Resende”, recomendou Pinto. “Ainda não sabemos como é que aquilo acaba, o major Paes pode não ganhar. “
“Estás mas é maluco, Cenoura. Eu conheço o homem, ele vai ganhar. “
“ Conheces o gaj o?”
“De Coimbra. Ele deu lá aulas na universidade.“ “E como é que ele é? “
“Um tipo às direitas, com ele não se faz farinha. Este regabofe dos deputa-dos, do Afonso Costa e da guerra vai acabar, o Paes vai pôr ordem nesta merda.“
“Deus te oiça”, comentou o tenente Pinto, que nunca digeriu a decisão de Portugal entrar na guerra. “Vocês já viram isto? Ainda em meados de Outubro o Bernardino e o Afonso Costa vieram cá ao CEP e menos de dois meses depois já estão ambos com guia de marcha “
O ambiente no posto era agitado. Os oficiais percebiam que os aconteci-mentos de Lisboa, qualquer que fosse o seu desfecho, teriam impacto nas suas vidas. Se o Partido Democrático permanecesse no poder, mantendo Bernardino Machado como presidente da República e Afonso Costa como primeiro-minis-tro, o plano de envolvimento de Portugal na Grande Guerra provavelmente permaneceria inalterado. Mas, se Sidónio Paes vencesse, as coisas mudavam de figura e ninguém ignorava que era possível a retirada do CEP do teatro das operações. Mais do que entre republicanos e monárquicos, o país estava agora dividido entre intervencionistas e não intervencionistas. Se o Partido Democrá-tico, no poder, era intervencionista, então quem quer que se lhe opusesse teria necessariamente de ser contra o envolvimento de Portugal no conflito.
Afonso saiu do posto e, apesar do frio glaciar, veio cá fora apanhar ar. Sentia-se dividido e não sabia o que pensar. Por um lado, desejava ardente-mente deixar as trincheiras, esquecer a guerra e regressar ao quartel de Braga ou ao ninho de Rio Maior.
Fizera a sua parte, cumprira o seu dever, era hora de descansar. Mas, por outro, não deixava de achar que o abandono do conflito deixaria o país malvisto pelos aliados e com o pós-guerra comprometido. Como manter o império se Portugal nem era capaz de aguentar duas divisões na Flandres? E, no fundo da sua mente, isso não era tudo, se o CEP partisse, não era só o prestígio de Portugal que se perderia, havia mais coisas que ficariam para trás.