Havia Agnès.
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Marcel estranhou o pedido da baronesa, franziu o sobrolho mas limitou-se a assentir.
“Oui, madame”, disse, seguindo-a pelos corredores do palacete. Agnès atravessou o foyer com impaciência, cruzou a porta de entrada, recebeu o ar frio da manhã como um sopro de liberdade e desceu as escadarias com alívio, estava cá fora, saíra do palacete, sentia-se leve. O criado ultrapassou-a, apressado, e foi a correr para o lado direito. Instantes mais tarde ouviu-se um motor a roncar e ele apareceu ao volante da Renault amarela do barão Redier, era uma elegante sedan, deu a volta à praceta, imobilizou-se diante da patroa, saltou cá para fora, o motor ainda a funcionar e a despejar fumo negro pelo escape, abriu a porta traseira, Agnès ergueu as largas saias cor-de-rosa, assen-tou o pé direito no degrau e instalou-se no compartimento fechado. Marcel voltou ao volante, destravou e arrancou, uma rajada de vento gelado despen-teou-o quando o carro passou o portão, afinal de contas o lugar do chauffeur era ao ar livre, apenas protegido pelo vidro dianteiro e pelo tejadilho.
A baronesa deixou-se guiar docilmente, os olhos fixos para além das janelas, cravados melancolicamente nas filas de plátanos, de choupos, de olmos, de tílias, que desfilavam pela berma da estrada, olhos que se perdiam na planície, nos bosques, nas ribanceiras, no céu aberto, nas vacas e nos porcos, nos patos e nos gansos, nas casas abandonadas, nos celeiros vazios, nos muros conquistados pela hera, nos flocos de neve que se diluíam em lama, nas carro-ças vagarosas, nos teimosos camponeses que insistiam em lavrar a terra, olhos que olhavam para fora mas apenas viam para dentro, os arbustos agitavam-se e Agnès observava-os sem os ver, diante dos olhos tinha somente Afonso, via-o a sorrir, a beijá-la, imaginava-o algures lá na frente, desde que lhe sentira o calor que deixara de suportar a presença de Jacques, ansiava pelo capitão que lhe fazia lembrar o marido perdido, ansiava tanto que, já desesperada, pedira a Marcel para a levar com ele para o mercado, para o acompanhar nas compras. Ela que nunca se preocupara com as compras na praça queria agora um pretexto para se afastar do palacete que a sufocava, um pretexto para escapar à espera ansiosa pelo seu português, para pensar noutras coisas, para se distrair, também para se sentir mais perto dele naquela vilória por detrás das primeiras linhas onde ele se enterrara. Estarei a ficar louca? questionou-se, ainda vendo sem ver os viçosos campos da Flandres a espraiarem-se para lá da estrada, a estenderem-se até ao fio do horizonte, a prolongarem-se até o verde se fundir no azul do céu. Conheço-o há tão pouco tempo, tão pouco, tão pouco, estarei a ficar louca? Respirou fundo, buscava ar que a libertasse da ansiedade que a oprimia, encheu o peito com aquele aroma frio e puro que lhe trazia notícias da vida, agitou-se com intranquilidade.
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O automóvel entrou em Armentières e os olhos de Agnès começaram enfim a ver, a enxergar o que se encontrava para além dos vidros. Lá fora agitava-se a povoação, a lama do carro saltava para as paredes das casas, a neve adquiria um aspecto sujo pelos cantos, via-se ali um estaminet, acolá um barbeiro, além uma boulangerie, por todo o lado soldados, deambulavam por ali todas as nacionalidades, tantas que até faziam lembrar aquele longínquo passeio pela Exposição Universal, eles eram ingleses, escoceses, canadianos, australianos, portugueses. Ah, portugueses! Agnès inclinou-se no assento e olhou-os com curiosidade, com intensidade, estudou-os, procurou neles traços de Afonso e vestígios que os assemelhassem a Serge como Afonso se asseme-lhava, les portugais sont toujours gais, lembrou-se, mas não lhe pareceu. Eram pequenos, atarracados, uns com rostos largos, outros de caras chupadas e maçãs salientes, simplórios, rudes, mal barbeados, botas sujas e descosidas, vestiam roupas ridículas, rotas, casacos azuis com mangas tão grandes que nelas se escondiam as mãos, uns usavam pelicos com peles de carneiro, outros tinham ar andrajoso, pareciam tristes, desenraizados, arrastavam-se pelas ruas em grupo, a fumar, alguns seguiam solitários, metidos consigo, eram miúdos sem alegria da vida, crianças sem infância, homenzinhos abandonados numa terra distante.
A Renault dobrou a esquina e aproximou-se do mercado, havia mais gente nas ruas, viam-se civis, sobretudo velhos e crianças. Ali ao fundo reconheceu uma nuca, o coração disparou, era Afonso. Agnès levou a mão à boca, sobressaltada.
“Alphonse “, murmurou.
Afonso estava ali. Afonso caminhava pelo passeio alagado, de costas, o carro aproximou-se, passou por ele, a francesa com o rosto colado ao vidro, os olhos verdes bem abertos, o automóvel ultrapassou Afonso, ela ficou a vê-lo, vidrada no vidro, a nuca dele tornou-se perfil e finalmente rosto, Afonso tinha os olhos a saltitarem distraidamente pelo chão e um cigarro no canto da boca, o bigode diferente, ela percebeu enfim que não era ele, não era Afonso, era outro, era um soldado canadiano. Agnès encostou-se no assento, ofegante, espantada, surpreendida consigo mesma, a mão no peito.
“Estarei louca?“, interrogou-se. “Mon Dieu, já o vejo por toda a parte.“ Matias Grande sentia-se cansado e com frio. Mantinha-se alinhado com os homens do pelotão na linha B, perto de Deadhorse Corpse, integrando a formatura da tarde, designada por A Postos, uma rotina diária directamente inspirada no Stand To britânico.
O sargento Rosa olhou para o fundo da trincheira, viu o capitão Afonso Brandão a aproximar-se e gritou para os seus homens.
“Aaaaaa postos!“
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O pelotão pôs-se em sentido nos buracos cavados na paisagem branca, chocalhando as botas e os metais das armas e munições num fragor rápido, voltou o silêncio e todos aguardaram a inspecção do oficial. Afonso foi chapinhando pela lama e pisando flocos de neve até ao ponto onde os homens se encontravam formados.
Caminhava quase distraidamente, um bengalão de ponteira metálica balouçando como um pêndulo na luva que calçava a mão esquerda, até que chegou junto do primeiro soldado do pelotão, Vicente Manápulas, olhou para a Lee-Enfield e fez uma careta de desaprovação, um bafo de vapor a sair-lhe pela boca.
“Quero este cano limpo e oleado.“
“Sim, meu capitão. “
O oficial passou lentamente pelos homens do grupo, apontando com o bengalão para aqui e para ali, fazendo reparos ao equipamento, às armas, às munições, aos aparelhos antigás. Repreendeu Baltazar Velho porque o seu respirador não se apresentava na devida posição de alerta, uma vez que, embora a máscara estivesse suspensa à frente do peito, como era do regula-mento, as molas da tampa encontravam-se voltadas para fora, o que violava as regras estabelecidas. Afonso passou por Matias Grande e inclinou ligeiramente a cabeça, em sinal de que o reconhecia da aventura de havia duas semanas, e, no final da revista aos homens, estacou junto do sargento Rosa.
“Sargento, quero ver o material de trincheira. “
O sargento percorreu a trincheira com o oficial atrás, mostrando-lhe as tarimbas, os armeiros, as bombas para tirar água das linhas, as picaretas e enxadas, os braseiros, os pulverizadores Vermorel, as pistolas especiais para lançar os cunhetes de iluminantes lerey, também designados por Verey lights, ou very lights, mais as buzinas Strombos e as sinetas de alarme. O mais frustrante eram as bombas, que continuamente retiravam água das trincheiras para os soldados verem mais água a brotar do chão lamacento ou a nascer do gelo acumulado, tornando quase inútil todo o exercício. O capitão mandou limpar algumas fezes que encontrou aninhadas nas tábuas das passadeiras e ordenou que se consertassem duas banquetas danificadas e um rolo de arame farpado que uma minenwerfer tinha rompido duas horas antes, deixando uma cratera junto ao parapeito de sacos de areia.