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O Sol, triste e esgotado, deitou-se por detrás das linhas portu guesas e a noite caiu, gelada e escura. O A Postos da tarde terminou, começando o período mais difícil da jornada. Não havia nada que o soldado mais temesse do que a noite, com os seus mistérios e perigos ocultos, com as suas ameaças escondidas e silêncios traiçoeiros. Afonso deu ordens para que fossem colocadas quatro sentinelas de vigia, em vez de uma única, como se fazia de dia. Duas das sentinelas tinham de ficar de pé, vigiando as linhas inimigas pelo 250

parapeito, e as outras duas podiam sentar-se nas banquetas. Ao fim de meia hora, um dos homens de pé trocava de posição com um dos sentados, e meia hora depois era a vez de os dois restantes trocarem igualmente de lugar. Tratava-se de uma forma de manter sempre de vigia um homem com os olhos habituados à escuridão. Apesar dos maiores perigos da noite, os snipers foram dispensados, dado que a visibilidade nocturna era nula e convinha poupar os soldados.

Como comandante da companhia da direita, cabia a Afonso garantir os preparativos para a noite, assegurando a posição das sentinelas, a fiscalização da linha da frente e a divulgação das ordens do dia. Nessa noite mandara efectuar vários trabalhos de reparação de passadeiras, drenagem de trincheiras e reposição de protecções, para além de ordenar a saída de várias patrulhas de reconhecimento e outras de protecção aos homens que trabalhavam no arame farpado. Mas a ordem mais importante dizia respeito à saída de uma patrulha de escuta, destinada a obter informações sobre o que se passava nas posições inimigas.

O problema é que as notícias de Portugal concentravam as atenções de toda a gente, com soldados e oficiais a especularem sobre o futuro da sua presença na Flandres. Não era ainda certo o rumo dos acontecimentos, se o major Sidónio Paes venceria, se Portugal iria pôr termo à sua participação na guerra, mas bastava a hipótese ser colocada para minar o espírito combativo. Ninguém queria morrer tão perto de regressar a casa, e foi, por isso, com contrariedade que Vicente Manápulas e Abel Lingrinhas receberam a ordem de se prepararem para a incursão pela terra de ninguém. A ordem veio de Afonso, mas foi transmitida pelo sargento Rosa.

“Porra, meu sargento, porquê nós?“, queixou-se Vicente, a gesticular com veemente indignação.

“Cala-te e veste-te”, indicou Rosa, estendendo aos dois homens os impermeáveis brancos.

Estas fardas eram utilizadas como camuflagem em paisagens nevadas, de modo a que os soldados se confundissem com o manto gelado que tudo cobria de serenidade alva.

“Então e porqu'é qu'o capitão não vem também?“

“Cala-te e veste-te.“

“É sempr'a mesma merda c'os oficiais”, murmurou Vicente, furioso, enquanto punha as calças brancas com gestos bruscos. “Arrotam postas de pescad'e nós é qu'arriscamos o couro. Vê lá s'ele tem tomates p'ra vir connosco.“

“Cala-te Manápulas, já te disse. “

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“Os camones da direita já mudaram e nós ind'aqui tamos nesta pocilga, a chafurdar na lama com'uns marranos. “

Vicente referia-se à 25. a Divisão britânica do XI Corpo, que ocupava a linha à direita de Ferme du Bois e que, dias antes, tinha sido substituída pela 42. a Divisão do XV Corpo do Exército do BEF. As tropas portuguesas começavam a ver os seus vizinhos a serem substituídos para irem descansar e ansiavam já pelo mesmo.

“Não te aviso mais”, rosnou o sargento. Apontou o indicador para Vicente, ameaçador. “Voltas a piar e na semana de descanso vais de serviço às latrinas, ouviste? “ O soldado continuou a resmungar, mas agora de modo imperceptível. Abel Lingrinhas permanecia silencioso, era mais introvertido, mas sentia-se igualmente assustado e irritado. Parecia-lhe pouco sensato fazer aquela opera-ção quando havia a possibilidade de, daí a alguns dias ou semanas, receberem todos ordem de regresso. Mas conformou-se.

Mostrava-se determinado a permanecer o mais invisível possível na terra de ninguém e a regressar inteiro às linhas do CEP e foi com essa ideia que vestiu o impermeável branco e, acompanhado pelo sargento Rosa e por um muito contrariado Vicente, seguiu para a linha da frente.

Como sempre quando frequentavam a primeira linha, instalou-se um silêncio respeitoso ao pisarem as tábuas da passadeira da linha da frente, no posto avançado de Duck's Bill. Aquele era o último reduto antes de enfrentarem o inimigo e era por ali que acederiam ao ponto mais perigoso de todos, a terra de ninguém. O sargento fez um sinal e os dois homens armaram as baionetas e sentaram-se nas banquetas, aguardando a chegada do oficial. O capitão Afonso Brandão apareceu em Duck's Bill perto das nove da noite com um rolo de linha telefónica desactivada debaixo do braço e sentou-se junto dos homens que iam partir para a patrulha de escuta.

“Isto é uma operação simples”, indicou, a voz num sussurro. “Quero vigilância do terreno sem intervenção. Entendido? “

Os dois soldados permaneceram calados. O manto escuro da noite ocultava-lhes os rostos, apenas era possível distinguir um vago contorno das silhuetas. Afonso sentiu-se desconfortável com aquele silêncio.

“Entendido? “, repetiu.

“O que devemos vigiar? “, quis saber Vicente.

Afonso rolou os olhos, impaciente. Era evidente que o soldado estava contrariado e se fazia desentendido, não era possível que andasse havia dois meses nas trincheiras e ainda não soubesse em que consistia uma patrulha de escuta.

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“Quero que verifiquem se há movimento de patrulhas inimigas e número de efectivos, mas não quero tiros, apenas informação”, disse com toda a paciência que conseguiu juntar, estendendo-lhes o rolo de fio telefónico que tinha trazido consigo.

“Levam o fio a servir de cordão. Um esticão significa que chegaram e que estão bem, dois esticões para regressarem, três esticões se detectarem patrulhas inimigas, seguidos do número de esticões relativos ao número de boches, e quatro esticões se acharem que a patrulha inimiga repre-senta um perigo para as nossas linhas. Entendido?. “

“Sim, meu capitão”, assentiu Vicente, resignado. “Vamos a isso, rapazes. Boa sorte e tenham cuidado.“ Os dois homens embandoleiraram as Lee-Enfield, agarraram o fio de telefone, entregando a ponta ao sargento Rosa, pegaram no arame-guia, que os conduziria por uma rota aberta entre o emaranhado dos rolos de arame farpado, puseram os pés nas banquetas e pularam em silêncio pelo parapeito, mergulhando na noite. Afonso e o sargento assomaram ao parapeito no seu encalço e sentiram, mais do que viram, Vicente e Abel a rastejarem lentamente pela neve, seguindo o percurso revelado pelo arame-guia, até que, uns metros mais à frente, os seus movimentos deixaram de ser perceptíveis. Apuraram a vista, tentando descortiná-los, mas nada registaram e Afonso não pôde deixar de pensar que existiam possivelmente patrulhas alemãs também a circular por ali, invisíveis e silenciosas, traiçoeiras e perigosas, e não desejou estar na pele dos dois homens que acabara de mandar para desafiarem a morte na terra de ninguém.

O capitão e o sargento permaneceram longamente no parapeito, mirando a imensidão de trevas que se estendia à sua frente. Apenas uns ocasionais tiros ou rajadas rompiam o silêncio que se abatera sobre as linhas. A certa altura, um very light, proveniente do lado alemão, acendeu-se no céu e começou a descer com lentidão, lançando uma luminosidade quase diurna sobre a terra de ninguém. Era uma luz estranha e assustadora, tinha algo de sinistro, parecia de outro mundo. Havia quem a achasse bela, mas o capitão sentia um invariável arrepio de medo sempre que via aquele clarão sobrenatural a pairar sobre as linhas. Tentando abstrair-se dos sentimentos sombrios gerados pelo very light, Afonso e Rosa esforçaram-se por aproveitar a visibilidade e detectar presença humana naquela faixa de terreno inóspito, presença que sabiam existir. Mas a paisagem permanecia morta, a luz revelava apenas as árvores tristemente curvadas, amputadas e calcinadas, erguendo-se como espantalhos, as sombras a girarem com suavidade pelo chão numa rotação contraposta ao farol que cruzava o céu, crateras cavadas na terra, um manto branco de neve a resplan-decer luminosamente sob o clarão frio do very light que descia pendurado no seu pequeno pára-quedas. O foco de luz foi morrer perto do horizonte, e, 253