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naqueles longos instantes de claridade, não vislumbraram sinais de Vicente e Abel, era como se ambos se tivessem volatilizado da terra de ninguém.

Ao fim de dez minutos, um único esticão do fio telefónico indicou que os dois soldados tinham chegado à posição de observação. Tranquilizado, Afonso sentou-se na banqueta, deixando o sargento a vigiar a terra de ninguém, e acendeu um cigarro curvado sobre si mesmo, as mãos enluvadas a protegerem o lume do vento cortante e, sobretudo, dos olhares inimigos. Os minutos passaram e não vieram novidades. O fio telefónico permaneceu imóvel e, por mais que aguçassem o ouvido ou tentassem discernir algo na escuridão, Afonso e o sargento Rosa não tiveram qualquer indicação proveniente da patrulha. O capitão sabia que, com aquela neve espalhada pelo chão, não deveria manter os dois homens muito tempo na terra de ninguém, sob pena de sofrerem hipotermia, pelo que, ao fim de meia hora, fez sinal ao sargento.

“Manda-os voltar. “

O sargento Rosa puxou duas vezes o fio telefónico e ficou a vigiar pelo parapeito.

Dez minutos depois, os vultos dos dois soldados emergiram da noite, brancos de frio, e saltaram para a linha da frente, os queixos a tiritarem, os bra-ços enregelados, tremendo e tremendo, sentaram-se nas banquetas e dobraram-se sobre si, encolhidos em busca de calor. O sargento estendeu-lhes um copo de aguardente, que engoliram de uma vez, ansiando sofregamente pelo ardor quente do álcool que lhes invadiu o corpo e queimou as vísceras.

“Então?“, perguntou Afonso quando os homens pareceram mais recom-postos.

“Não há novidade, meu capitão”, disse Vicente Manápulas muito rapidamente, engolindo sílabas, num fôlego quebrado pelo frio. “Ouvimos os gajos a falarem ao fund'e mais nada. “

“Nenhum movimento?”

“Nada. “

“Para onde é que vocês foram? “

“P'ra uma cratera ali ao fundo, perto dos gajos. Estav'um zieiro do camano. S'a gente se delatasse mais um pouco, cangava. “

“Em que ponto é que os boches estavam a falar? “ “Junt'ó parapeito, em linha recta diante de Rifle Row, ali em Mitre Trench”, respondeu Vicente, indicando a direcção com a mão. “Mesm'ali. “

Afonso suspirou e ergueu-se.

“Vão lá descansar”, disse, antes de se afastar.

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O capitão seguiu para o posto de sinaleiros. Tinha de passar a informação de que permanecia tudo calmo no seu sector e a ordem para metralharem a posição onde a patrulha detectou soldados inimigos a falarem, mas sobretudo queria ainda saber novidades dos acontecimentos em Portugal. Depois de comunicar que a patrulha de escuta não tinha registado nenhum movimento nas posições alemãs, foi informado pelo alferes de serviço ao telégrafo de que as forças revoltosas em Lisboa montaram um acampamento no Parque Eduardo VII, enquanto a Guarda Republicana, leal ao governo, se instalara no Rossio. Não havia mais pormenores e o capitão voltou às linhas para efectuar a ronda da noite e inspeccionar os trabalhos de reparação e drenagem das trincheiras. Só iria deitar-se pela alvorada, depois de o clarão radioso da manhã emergir difuso para além das linhas inimigas.

Matias Grande, Baltazar Velho e mais quatro homens passaram três horas por cima do parapeito da linha da frente, entre Newcut Alley e Château Road, envolvidos no trabalho de fortalecimento das posições defensivas. Operando às escuras e comunicando em murmúrios temerosos, os seis soldados colocaram dezassete concertinas e quatro rolos de arame farpado naquele sector, uma vez que as anteriores protecções tinham sido arrancadas por umas morteiradas que ali caíram durante o dia. Perderam a sensibilidade nos dedos, as mãos agitavam-se num tremor miúdo, dormentes e enregeladas, e foi com grande alívio que deram o trabalho por concluído e receberam autorização do sargento Rosa para recolherem ao abrigo, situado em Baluchi Road.

Matias e Baltazar beberam meia garrafa de rum junto às paredes interiores do parapeito, sentiram o álcool a aquecer-lhes as entranhas como o bafo de um vulcão e, mais reconfortados, fizeram-se ao caminho. Subiram pela Château Road até à Rue Tilleloy e meteram logo pela Baluchi até chegarem ao abrigo. Mergulharam no buraco lamacento e deram com Vicente e Abel estirados no chão e envolvidos em mantas, os corpos iluminados por uma lamparina fraca, a luz amarela e bruxuleante a dançar-lhes no rosto.

“Então essa patrulha? “, perguntou Matias enquanto se instalava.

“Nem me fales”, devolveu Vicente, pálido de frio, a manta a cobri-lo até ao nariz.

“Estav'um zieiro infernal “

“Então eu não sei? Estou com as mãos inchadas de frieiras caraças.“ Exibiu os punhos deformados pelo frio, os dedos gordos e vermelho-arroxeados. “Até parece que me sai sangue das unhas. “

“Isto é pior do que a serra”, queixou-se Baltazar, que era do Gerês e estava habituado ao gelo seco das alturas. “Nem sinto os dedos, porra! “ Matias fitou Abel e reparou que o amigo tremia descontroladamente.

“Ó Lingrinhas, isso está mau. “

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“Ah, Matias, estou gelado”, desabafou com dificuldade. “Esta patrulha na neve fez-me mesmo mal. “

“Isso vejo eu. Já emborcaste a murrilha? “

“O sargento deu-me um bocado quando acabou a patrulha” gemeu Abel. “Mas o rum, a mim, não me faz muito efeito.”

“Credo, homem, não sei o que te faça. Não te posso acender uma fogueira, não te posso arranjar uma gaja boa para te escacholar. Se aquela mascambilha não te faz efeito. “ Abel Lingrinhas bateu o dente mais um bocado antes de conseguir voltar a falar.

“Sabes o que me fazia mesmo bem? “, perguntou finalmente. “Diz lá “

“É uma coisa que a minha mãe me dava no Inverno “ A tremideira de frio acentuou-se e Abel cerrou as pálpebras e calou-se, toda a cabeça a agitar-se num delírio de gelo.

Matias impacientou-se.

“Que coisa? Desembucha, homem.”

Abel reabriu os olhos.

“Chá. “ “ Chá?”

“Sim, um chá quentinho, regado a álcool. Pode ser rum. Chá com rum. Ah, isso é que era uma maravilha.“

“Ó Lingrinhas, onde é que te vou arranjar chá a esta hora? Não dá para ir ali ao estaminet... “

Abel voltou a fechar os olhos, o corpo sempre a tremer em descontroladas convulsões de frio.

“A malt'ainda tem aqui uns pacotinhos de chá”, anunciou Vicente, vasculhando a caixa das rações. “O problem'é a água quente “

“Sempre podíamos fazer uma fogueira”, avançou Baltazar, pensativo. “Montávamos um fogo de categoria”

“Estás maluco, Velho”, cortou Matias. “Ainda sufocávamos aqui dentro, nem pensar.