Выбрать главу

“ Calou-se um instante, pensativo, à procura de soluções. Uma rajada de metralhadora cortou o ar lá fora, o som sincopado a entrar abafado no abrigo, pareceu a Matias que vinha das linhas alemãs, era uma Maxim. O soldado teve uma ideia e ergueu-se num ápice.

“A chaleira? “

“Hã “

“A chaleira “

“Est'ali ao fundo, homem”, apontou Vicente, apoiado no cotovelo. “Porquê?

Queres mesm'acender a fogueira? “

Matias deu três passos, agarrou na chaleira e saiu disparado do abrigo.

256

“Já volto. “

O cabo subiu a Baluchi em passo rápido e enérgico, tentando gerar calor que o defendesse do frio cortante que lhe penetrava pelo colete de pelica, e foi até Sunken Road.

Meteu à direita pela Sunken e, antes do posto de Tilleloy Sul, deu com o ninho de metralhadora camuflado entre sacos de terra e vegetação postiça.

“Rogério”, chamou.

“Quem vem lá?“, perguntou uma voz vinda da escuridão. “Sou eu, o Matias. “

“Ah, manganão. O que me queres? “

“ Estás de serviço à costureira?”

“O que é que julgas que estou aqui a fazer, hã? A pinar uma sansardo-ninha? “

“Preciso de uma ajudinha tua. “

“Diz lá. “

“Tenho um marada que está a cangar de frio, treme que nem uma galinha diante do cutelo. “

“Dá-lhe uma murrilha. “

“Isso já lhe disse eu, mas parece que não faz efeito. “ “Então ele que vista um casaco.

“Porra, Rogério, estou aqui a apanhar um zieiro do catano e não tenho paciência para brincadeiras. “

“Então diz lá o que queres. “

“O meu marada precisa de chá. “

“ Chá?”

“ Sim, chá. “

“Olha lá, ó Matias, estás a mangar comigo ou quê? “ “A sério.”

“Chá para aquecer? Diz-me lá, quem está com frio é um marada teu ou não será antes uma demoiselle que trouxeste às escondidas aqui para as trinchas? “

“É um marada, porra. É o Lingrinhas. O tipo andou na neve durante uma patrulha e está que nem pode.

“Mas onde é que queres tu que eu lhe arranje chá? Tens cada uma!

Matias impacientou-se e decidiu ir directo ao assunto. “Olha lá, ó Rogério, já abriste fogo esta noite? “ Fez-se silêncio.

“Rogério “

“Estás a reinar comigo, diz-me que estás a reinar comigo. “ “Vá lá, sê bacano, dá-me uma mãozinha. “

Fez-se um novo silêncio, mais curto.

257

“Portanto, se bem entendi, queres que eu abra fogo para que tu possas fazer um chá a um marada que está com frio, ainda para mais o Lingrinhas, esse gramito metido consigo...“

“É isso.“

“Tu estás mas é maluco, ó Matias.“

“Vá lá.“

Novo silêncio.

“O que é que eu ganho com isso?“

“Dou-te um xagrego.“

A voz na escuridão riu-se com gosto.

“ Um xagrego Um!“

“Está bem, dois”

“Dois xagregos? Estás a reinar comigo.“

“Três. “

“Um maço.”

“Cinco. “

“Um maço, já te disse. “

Matias suspirou, apalpou o bolso e sentiu o maço de cigarros. “Um maço inteiro não tenho”, disse. “Mas posso dar- te todos os xagregos que estão no meu bolso, faz quase um maço “

Fez-se mais um breve silêncio.

“Está bem, seu valdra, negócio fechado. Ajuda-me aqui. “ Matias avançou no escuro de braços estendidos. As mãos flutuaram no ar até sentirem o corpo quente de Rogério e a superfície metálica e dolorosamente gelada da Vickers Mk I, a grande metralhadora pesada britânica, de 303 polegadas, assente num tripé.

“Passa-me a caixa que está aí ao fundo”, pediu Rogério. “São as munições.“ Matias puxou a caixa e tirou uma cinta de balas, eram duzentos e cinquenta projécteis alinhados lado a lado, como dentes afiados e ameaçadores, prontos a rasgarem a carne e a estilhaçarem ossos. Rogério encaixou a fita na metralhadora, agarrou os manípulos com as duas mãos, sentiu o gatilho nos polegares e rodou a arma.

“Para onde é que atiro? “

“Manda umas bujardas ali para a segunda linha da Mastiff Trench, mesmo junto aos boches. “

Rogério apontou para a esquerda, calculou a posição da linha da Mastiff Trench, bem dentro das posições alemãs que se espraiavam diante de si, e carregou no gatilho. Um 258

matraquear ensurdecedor encheu o pequeno abrigo camuflado, as balas saíam do cano em sucessão rápida e explosiva. Tra-tra-tra-tra-tra-tra. Matias pensou que era como um cão a ladrar-lhe sobre os ouvidos, um ronco louco e insuportável, um ruído dos infernos a encher-lhe a cabeça e a testar-lhe os nervos. O tapa-chamas, na ponta do cano, ocultava do inimigo os relâmpagos de cada tiro, impedindo que os alemães detectassem com precisão a fonte dos disparos. A primeira cinta esgotou-se em trinta segundos, tão rápida era a sucessão de fogo, e a arma calou-se. Um silêncio retemperador encheu o pequeno abrigo.

Rogério meteu uma segunda cinta e a cacofonia infernal regressou de imediato. Quando a segunda cinta também se esgotou, trinta segundos e outras duzentas e cinquenta balas mais tarde, Rogério colocou uma terceira e, meio minuto mais tarde, uma quarta. Gastou mil balas em dois minutos de tiro, mais algum tempo para as mudas de cinta. Quando terminou, pôs levemente o indicador na grossa manga de arrefecimento para avaliar a temperatura.

“Está bom”, disse finalmente.

Matias ergueu-se, foi até à extremidade da gorda manga cilíndrica da Vickers, tacteou o metal quente em busca da abertura para a saída da água e encontrou-a na ponta, por baixo, mesmo atrás do tapa-chamas. Desenroscou a abertura com os dedos, encostou a chaleira por baixo do orifício e deixou a água a ferver encher o recipiente. Quando a chaleira ficou cheia, tirou-a e deixou despejar o resto da água quente no chão. Depois voltou a enroscar a tampa do orifício de evacuação da água e abriu o orifício de entrada de água, no topo da manga, mesmo junto à mira. Rogério deu-lhe um garrafão com água gelada e Matias despejou-o pelo orifício para dentro da manga. Ouviu-se um fzzzz prolongado, era a água gelada a arrefecer o cano quase incandescente. Termi-nada a tarefa, o cabo enroscou a tampa, pegou na chaleira a transbordar de água quente e ergueu-se.

“Isto de a costureira ser arrefecida a água dá um jeitão do caraças”, comen-tou com um sorriso. Pôs a mão esquerda no bolso, agarrou no prome-tido maço de cigarros e estendeu-o ao operador da Vickers. “Obrigadinho, ó Rogério” E abalou por ali fora, a chaleira repleta de água a ferver para o chá do Lingrinhas.

Infantaria 8 terminou o turno nas trincheiras a 12 de Dezembro e logo no dia seguinte, aproveitando a jornada de descanso habitualmente concedida a uma unidade que acabara de abandonar as primeiras linhas, Afonso solicitou um passe para abandonar o acantonamento, requisitou um cavalo, um pesado ardenês branco- sujo com tufos de pelos negros do topete à crineira e manchas escuras nas coxas e no curvilhão, e seguiu a trote para o quartel-general do CEP em St. Venant. Já nas ruas da vila estacou perante uma tabuleta insólita. “Avisa”, anunciava a tabuleta, indicando: “É prohibido o uzo latrines 259

inglezas aos portuguezas teem os proprios latrines ao entrada do Parque algumas encontrados uzando otros latrines será castigados severamente. “ Releu o texto, atónito e divertido. Quem será o idiota que escreveu isto? interrogou-se. Começou por imaginar um analfabeto das berças, mas logo concluiu que só poderia tratar-se de um inglês, só esperava que não tivesse sido Tim. Ainda a rir-se, deu um estalido com a língua e obrigou o cavalo a retomar a marcha até ao quartel-general, onde chegou minutos depois.