“É então isto a Grande Canja? “, comentou para a sentinela, em tom de provocação, quando viu o edifício diante de si, numa bucólica área verde defendida por um sólido muro de pedra.
Grande Canja era o nome que os homens usavam para se referirem ao quartel-general do CEP, por considerarem ser fácil aí combater na guerra. O quartel-general da 1. a Divisão era a Canja n. 1, e o da 2.a Divisão era a Canja n.o 2, os antros onde formigavam as legiões de combatentes da retaguarda, os bravos guerreiros que faziam dos hotéis e dos restaurantes os seus sangrentos campos de batalha, os indomáveis homens que, em vez das trincheiras cinzentas de Fauquissart, de Neuve Chapelle e de Ferme du Bois, preferiam arriscar a vida nas macias areias das praias de Ambleteuse, Étaples e Boulogne.
O oficial desmontou do cavalo, acariciou-lhe o dorso, entregou-o a uma ordenança e cruzou a pé o portão de entrada para o terreno da Grande Canja. Era uma mansão majestosa, de dois andares e enormes janelas, a principal situada no primeiro andar, sobre a entrada, e assinalada pelo rectangular gradeamento de ferro trabalhado que protegia um pequeno varandim. O capitão atravessou o desmazelado jardim que se estendia defronte da mansão, passou por entre um pequeno Ford T e um elegante Bugatti Tippo 10 estacionados à porta e entrou no quartel-general.
Afonso tinha um amigo no quartel-general. Tratava-se do tenente Trinda-de, o seu colega de carteira na Escola do Exército, que trabalhava no secretariado do general Tamagnini Abreu. Trindade era o antigo cadete conhecido na Escola por Ranhoso devido ao célebre incidente infeliz numa aula quando espirrou violentamente sobre um professor.
Mas, na Flandres, a alcunha mais adequada era a de “cachapim”, o termo pejorativo que os homens das trincheiras reservavam a todos os militares que escolhiam a burocracia como teatro de operações e elegiam as canetas como as suas armas de combate. O CEP estava cheio de cachapins, homens que pululavam na retaguarda para garantirem o funcionamento dos mais variados serviços, desde trabalhos de secre«taria até ao serviço de subsistências, serviço de contabilidade, serviço de beneficiação de fardamento, serviço de salvados, serviço de agronomia e até o serviço de expedição de bagagens e registo de perdas, militares que do campo de batalha nada conheciam. Havia os cachapins ligeiros, que 260
ocupavam o quartel-general da brigada, os médios, que deambulavam pelas divisões, e os cachapins pesados, que se encontravam ali, na Grande Canja. E exis tiam ainda os palmípedes, uma espécie de cachapins de luxo, felizardos que andavam de automóvel e pernoitavam nos palacetes por entre lençóis lavados e chauffage central, o sistema de aquecimento só acessível a uns eleitos. No Château Redier, Afonso fora um palmípede, é verdade, mas apenas por pouco tempo. Já o tenente Trindade era um cachapim de alma e coração, ainda para mais um cachapim pesado com aspirações a palmípede, porventura o único que Afonso não desprezava, privilégio sem dúvida resultante da velha amizade que nem nestas horas se traía.
O capitão bateu à porta do secretariado e perguntou pelo tenente.
“Então, Ranhoso?“, disparou em jeito de saudação quando viu o amigo assomar à porta.
“Olha-me este finório!“, exclamou o tenente Trindade com um sorriso. “Sê bem-vindo ao meu miserável posto de combate. “ Fez sinal para entrar e Afonso obedeceu.
“Diz-me uma coisa, ó Aprumadinho. É mesmo verdade que proibiste os teus homens de dizerem palavrões? “
“Sim, porquê? “
Trindade soltou uma ruidosa gargalhada.
“ Ena, és mesmo catita, disse, contorcendo-se de gozo. Não há dúvida de que a alcunha de Aprumadinho te caiu a matar. “ Riu-se mais um pouco. “Olha lá, quando um magala leva um balázio no cu, que palavras autorizas tu que ele diga, hã? Valha-me Deus?
Credo? Ai Jesus? “
Afonso forçou um sorriso.
“Não autorizo palavra nenhuma em especial. O que eu não gosto é de estar a ouvir as ordinarices todas, isso não faz o meu feitio e o pessoal sabe. “
“Ah, caraças, enganaste-te na vocação”, observou o tenente. “Devias era ter ido para padre. “ Ergueu o indicador. “Para padre, digo-te eu. “
“Vou pensar nisso. “
Trindade bocejou.
“Então diz lá, ó Aprumadinho, o que estás tu aqui a fazer? “ “Se queres que te diga, não sei”, gracejou Afonso. “Cansei-me do tédio das trincheiras e vim aqui ver como é que se combate no quartel-general. Devo dizer-te que estou impressionado, vocês parecem uns guerreiros temíveis. Os boches cagavam-se todos se aqui viessem. “ O tenente riu-se. Conhecia a má fama dos cachapins entre os homens das trincheiras, mas não se mostrava preocupado. Lá em Portugal a família consi-derava-o um herói, estava 261
na guerra e era tudo o que sabiam, preocupavam-se com a sua segurança e desconheciam que era possível fazer a guerra sem ver a guerra. Era preciso estar na Flandres para conhecer a diferença entre lãzudos e cachapins, à distância eram ambos iguais, encontravam-se todos na guerra, e o que lhe interessava verdadeiramente era o que pensava a malta lá em casa, não a malta das trincheiras. Que melhor coisa havia senão aquela de ter a fama de andar na guerra e ter o conforto de não a viver, de ter a reputação de dormir na lama e passar as noites confortavelmente aninhado debaixo de lençóis perfu-mados e com os pés aquecidos por botijas de água quente, de ser conhecido por matar alemães à baioneta enquanto dos alemães só ouvia falar nas conversas da messe. Além do mais, e bem vistas as coisas, ser um cachapim não era um acto de vontade, mas um capricho do destino. Afinal de contas, quantos lãzudos, se pudessem, não se tornariam cachapins?
Quantos homens não dariam um braço para abandonarem a miséria das trincheiras e recolherem-se ao conforto da retaguarda? Quem poderia afirmar, com absoluta sinceridade, que era melhor ser lãzudo do que cachapim? Não seria afinal o desprezo dos lãzudos pelos cachapins uma forma dissimulada de inveja? Tudo isto aflorava à mente do tenente Trindade sempre que era confrontado por um lãzudo, mesmo quando o lãzudo se tratava de um amigo de carteira da Escola do Exército.
“Senta-te, Afonso”, convidou, indicando-lhe uma secretária. “Agora não posso ir tomar um copo contigo, estou de serviço aos sinais, mas falamos aqui.“ Afonso tirou o boné de oficial e sentou-se junto à secretária do amigo. O gabinete estava repleto de tecnologia de comunicações, desde pombos-correios até às últimas novidades no domínio dos aparelhos eléctricos, como os telégrafos Fullerphones e os telefones Power-Buzzer.
“Muitos mortos nas trinchas?“, perguntou Trindade, recostando-se na cadeira.
“Alguns”, disse Afonso com tristeza, sem querer entrar em pormenores.
“É bom, é bom!“, exclamou o Ranhoso, aprovadoramente. “É preciso que morram muitos para que os nossos aliados vejam o nosso sacrifício, o nosso heroísmo “ O capitão arregalou os olhos, surpreendido com o comentário. “Estás parvo ou quê?“
“A sério, Afonso. Quantos mais morrerem, mais nos respeitam. É assim mesmo, o que é que pensas? Eu sei que parece chocante para quem está nas trinchas, mas nos estados-maiores eles prestam atenção a isso, caraças, quando não há mortos é porque não há combate, há cagufa. É assim que eles pensam. É por isso que precisamos de mostrar trabalho. É fundamental que os camones vejam de que cepa é a nossa gente, de que têmpera é a nossa raça! “