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“Não sabes o que dizes”, murmurou Afonso, suspirando e abanando a cabeça.

“Desde que te conheço que passas a vida a elogiar a matança, a citar Hegel, Moltke e Nietzsche, dizendo que a guerra faz parte da ordem divina, que ajuda a preservar a saúde dos povos, que a crueldade intensificada é a mais elevada forma de cultura e outras balelas do género. Pois olha que nunca te vi nas trinchas a elevar a tua cultura, a preservar a tua saúde e a defender a ordem divina das coisas...“

“Não me viste, nem verás”, riu-se Trindade. “Que eu saiba sou militar, mas não sou parvo. A gentinha que se mate. Eu cá estou para a glorificar.” A conversa do Trindade Ranhoso era típica de um cachapim do quartel-general.

Quanto mais longe se estava da linha da frente, mais grandiosas e eloquentes eram as tiradas sobre a glória de Portugal e a bravura da raça portuguesa. Os homens que frequentavam as trincheiras não falavam assim, apenas se preocupavam com a sua sobrevivência e com a dos seus camaradas. O patriotismo era um luxo a que não se podiam dar. Olhando para o amigo da Escola do Exército, o capitão considerou que era preciso estar bem confortável na retaguarda para se poder falar daquela maneira, era preciso viver no bem-bom sem arriscar a pele para se ter a coragem de apregoar a glória da morte, era preciso encontrar-se em segurança sem ouvir as minenwerfer a estourarem e as Maxim a matraquearem na sua direcção para se atrever a mencionar palavras como heroísmo e cagufa, era preciso estar longe, bem longe, para imaginar que a guerra engrandecia a pátria e enobrecia os homens. Só com a barriga cheia e vivendo em conforto se podia teorizar sobre conceitos abstractos como a bravura, a honra, o patriotismo. Para os soldados que comiam mal, dormiam na lama, conviviam com ratos, tiritavam de frio, tremiam de medo e lamentavam a morte dos seus camaradas, apenas a realidade contava, a realidade e o desejo de normalidade, o gosto pelas coisas simples, uma sopa quente, uma lareira acolhedora, a roupa seca, o carinho da mãe, da namorada, da mulher. Afonso conhecia bem a conversa dos cachapins e decidiu não contra-argumentar, sentia-se cansado e só iria irritar-se.

O tenente Trindade intuiu o agastamento latente de Afonso e atribuiu-o a quem vive as coisas demasiado perto, no fundo entendia-o, o capitão estava excessivamente próximo da guerra para captar o retrato geral, a proximidade fazia-lhe perder o sentido de perspectiva, a noção do sacrifício individual para o bem comum. Era esse, afinal, o mal de todos os que combatiam nas trincheiras, pensou Trindade. Para eles, a morte era uma coisa pessoal e isso impedia-os de perceberem a importância dos grandes sacrifícios para cimentar o prestígio do país. As pequenas coisas, como a vida de um homem, tornavam-nos cegos aos grandes valores, como a vida de uma nação, viam a árvore mas não enxerga-vam a floresta, as trincheiras tornavam-nos míopes, perdiam a imagem global.

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Tudo isto passou pela cabeça dos dois homens em algumas fracções de segundo enquanto se miravam. Vendo que o amigo não dava luta, o rosto do tenente abriu-se num sorriso.

“Então o que te traz por cá?“

“Preciso de um favor teu.“

“Depende do favor.“

“Não é nada de especial. Precisava que me dessem uns dias para ir descansar a Paris.“

“Descansar a Paris?“, admirou-se o tenente, franzindo o sobrolho. “Não me digas que há moura na costa...“

O rubor que subiu ao rosto de Afonso traiu-o irrevogavelmente, e Trindade riu-se, deliciado com a sua perspicácia e com o visível embaraço do amigo.

“Quem diria que o Afonso Aprumadinho andava a caçar mademoiselles nas trinchas”, exclamou, provocador. “E ainda falam nos cachapins! “ Inclinou-se na cadeira, o olhar gozão. “Quem é ela?”

“Deixa-te de merdas, ó Ranhoso”, cortou Afonso, reprimindo com dificuldade a irritação. “Arranjas-me a licença ou não? “

O amigo tinha tocado num ponto sensível, o capitão não queria fazer alarde da sua relação com Agnès, ela não era uma paixoneta do momento, pelo menos não era assim que a via.

“Vá, diz lá”, insistiu Trindade.

“Não conheces e não interessa! “, declarou Afonso, num modo que não admitia discussão. “Arranjas-me ou não uma licença de uns dias?” O tenente Trindade voltou a recostar-se na cadeira e respirou fundo.

“Claro”, assentiu finalmente. “Mas para o imediato só te consigo obter dois dias. “

“Serve. Quando é que os posso gozar? “

“Vou ali ao velho e já a partir de amanhã podes ir tratar da saúde à tua mademoiselle.

“És um compincha”, disse Afonso, com alívio. “E uma licença mais alargada?”

“Arranjo-te cinco dias depois do Natal. “

“A sério?”

“Sem problema”, retorquiu o tenente, levantando-se. Trindade foi ter com um outro oficial no gabinete, pegou nuns papéis e voltou para junto de Afonso.

“Preenche estes formulários que eu trato do resto. “ Afonso percorreu os documentos com os olhos, molhou uma caneta na tinta e preencheu-os em silêncio.

Quando terminou, entregou-os a Trindade. O tenente verificou se estava tudo nos 264

conformes, notou uma incorrecção, questionou Afonso e rectificou o texto, acabando por se dar por satisfeito.

“Vou ali levar isto ao velho”, disse, erguendo-se da cadeira. “Já sabes da revolução? “

“Sim, o major Paes lá venceu. “

O tenente inclinou-se para a secretária, abriu uma gaveta e tirou de lá um jornal, que estendeu a Afonso.

“Lê enquanto eu vou ao velho e já volto. “

O capitão pegou no jornal, era O Século, datado de 8 de Dezembro, tinha apenas cinco dias. A toda a largura da primeira página estendia-se o título “O movimento revolucionário d'estes dias”, com uma fotografia aérea de Lisboa e um retrato de Sidónio Paes. Afonso leu avidamente o jornal, que falava sobre “o troar do canhão”, “as descargas de fusilaria” e os “cruentos combates” na capi-tal, revelando que os alunos da Escola de Guerra e os homens de Cavalaria 7 e Artilharia se tinham juntado ao major Paes na ocupação do Parque Eduardo VII, contando ainda com o apoio de Infantaria 5, 16 e 33 e de muitos civis, alguns dos quais saquearam lojas. Vários edifícios da Avenida e da Baixa foram atingidos pela artilharia dos revoltosos, incluindo o Avenida Palace, ao mesmo tempo que o Campo Pequeno foi bombardeado por haver notícias de que se encontravam aí elementos afectos ao governo, designadamente a Guarda Republicana. Cruzadores tomaram posições no Tejo, marinheiros ocuparam os telhados da cidade, contaram-se setenta mortos e trezentos feridos, mas as contas não estavam ainda fechadas. Afonso admirou-se com este relato de uma cidade transformada em campo de batalha, com tiroteio no Rossio e nos Restau-radores e canhões a abrirem fogo do Parque Eduardo VII durante uma noite inteira, e interrogou-se pela enésima vez sobre os efeitos daqueles acontecimentos na participação portuguesa na guerra. Soubera nas trincheiras que tinha havido uma revolução e que Sidónio Paes vencera após dois dias de combates em Lisboa, mas ninguém ainda conseguia determinar ao certo qual o futuro do CEP. As conjecturas multiplicavam-se, é verdade, mas certezas não havia.

O tenente Trindade regressou entretanto ao gabinete, um semblante de dever cumprido no rosto.

“Está tudo tratado”, anunciou. “Aqui tens os teus dois dias de licença, a começar amanhã.”

Afonso pegou distraidamente nos documentos, com uma indiferença que espantou o amigo, e acabou por disparar a pergunta que a todos atormentava nas trincheiras.