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“ Olha lá, ó Ranhoso, a malta volta ou não para casa?” “Voltar para casa?“, interrogou-se o tenente, sem perceber. “Mas o que me pediste foi uma licença de uns dias para... “

“Não é isso”, cortou Afonso, abanando a cabeça com impaciência. “O major Paes vai manter Portugal na guerra ou vai mandar a malta para casa?”

“Ah! “, exclamou Trindade, caindo pesadamente na cadeira. O tenente abriu a mesma gaveta, tirou de lá outro jornal e estendeu-o ao amigo. “Lê!” Afonso pegou no jornal, era mais uma vez O Século, só que do dia seguinte ao anterior, estava datado de havia quatro dias, 9 de Dezembro. O capitão admirou-se com a rapidez com que os jornais chegavam ao quartel-general, mas não teceu comentários.

Olhou para a primeira página e apanhou o título “Lisboa regressa à normalidade”.

Começou a ler o texto mas Trindade apontou para um subtítulo na coluna central, ao fundo da página. “Palavras do sr. Sidónio Paes”, anunciava o subtítulo.

“O que é que tem? “, quis saber Afonso.

“Não sabes ler?“, perguntou Trindade, inclinando-se sobre o jornal e começando a ler em voz alta um trecho da resposta do chefe dos revolucio-nários a uma pergunta feita pelo repórter de O Século. “O governo manterá os compromissos internacionais, nomeadamente os que se filiam na aliança com a Inglaterra.“ O tenente levantou os olhos do jornal e fitou o amigo. “Percebeste?“

Afonso observava-o de olhos arregalados, digerindo o impacto das palavras atribuídas a Sidónio Paes. Levou um longo segundo a tirar as devidas ilações daquela declaração e a formulá-las numa curta frase.

“Vamos continuar na guerra. “

O tenente Trindade recostou-se na cadeira, pôs as pernas cruzadas sobre a secretária, acendeu um cigarro, aspirou com vagar, tirou o cigarro da boca e expeliu uma enorme e tranquila baforada de fumo cinzento.

“Afonso, és um génio. “

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VII

Os triângulos encarnados assinalavam a proximidade das tendas da YMCA, a Young Men Christian Association, que se encontrava espalhada por todo o sector ocupado pelo British Expeditionary Force. O Hudson negociou a curva enlameada e imobilizou-se junto à primeira tenda, para onde convergiam vários tommies ingleses, todos eles visivelmente animados.

“É aqui”, disse Afonso, desligando o motor e apeando-se. O capitão deu a volta ao carro pela frente, abriu a porta do passageiro e convidou Agnès a sair. A jovem baronesa mostrava- se elegantemente vestida, apesar de os seus trajos estarem quatro anos ultrapassados na agenda dos exigentes estilistas parisien-ses. A silhueta minaret, que costurara em Paris nos seus tempos de estudante de Medicina, tinha estado na moda em 1913 mas fora já substituída por outras novidades, embora isso não passasse verdadeiramente de um insignificante pormenor que se perdia naquele canto da província embrutecido pela guerra. Uma mulher bela era sempre uma mulher bela, e a sua sofisticada túnica de carmesim flamejante, envolvendo uma apertada saia de crinolina e coroada com um magnífico chapéu cloche, produziu um inevitável efeito dramático entre a soldadesca britânica. Afonso entrou na tenda orgulhoso como um pavão, levan-do no braço uma elegante francesa que deixava os tommies de olhos arregalados. O capitão ofereceu um copo de capilé a Agnès e sentaram-se ambos nas cadeiras, aguardando o início do espectáculo.

“Costumas ir ao cinematógrafo? “, quis saber Afonso enquanto bebericava o seu capilé.

“Agora, raramente. Mas em Paris fui muitas vezes ao Phono-Cinéma- Théâtre du Cours-la-Reine, às salas Omnia e ao Gaumont-Palace, que é o maior cinema do mundo. “

“O maior?“, admirou-se Afonso. “Olha que eu acho que, se foi, já não é. Dizem que, na América, foi agora estreado um teatro cinematográfico de luxo, todo ele ricamente decorado, com candelabros de cristal, carpetes no chão e tudo. Li no jornal que é uma coisa faraónica. Ao que parece, o teatro tem mais de três mil lugares sentados e uma orquestra com espaço para trinta músicos.“

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“Vraiment? Mon Dieu, só na América”, comentou Agnès em tom aprecia-tivo antes de mudar para o seu assunto favorito, as estrelas de cinema. “A minha artista favorita é Sarah Bernhardt. “

“Eu cá gosto da Mary Pickford e da Marion Davies. “ Ela cerrou as sobrancelhas, fez beicinho e encarou-o com ar grave.

“Se tivesses de escolher, preferia-las a elas ou a mim? “ Afonso riu-se, divertido com a pergunta tipicamente feminina. “A ti, claro, ma mignonne. “

“Boa resposta, mon chèri”, sorriu Agnès, agradada. “Pois eu prefiro-te muito mais a ti do que ao Douglas Fairbanks. “

Os jovens da YMCA fecharam entretanto o acesso à tenda, procurando impedir a entrada da luz, e anunciaram o início da projecção. A máquina de cinematografia começou a trabalhar, ronronando como uma metralhadora longínqua, tac-tac-tac-tac, emitiu um foco de luz sobre uma tela branca, apareceram números a preto a saltitar na imagem e depois veio o filme. Um padre anglicano sentou-se ao piano e começou a tocar, enchendo a tenda de música e suprimindo o silêncio da película. Primeiro passou um documentário dos Les annales de la guerre, um trabalho da Section photographique et cinématographique de l'Armée com as últimas novidades sobre o conflito, seguindo-se, para descontrair, o sketch cómico The Rink, de Charles Chaplin, que produziu um tremendo efeito dentro da tenda.

Os espectadores desataram a aplaudir quando viram a figura do vagabundo de bigode, e as gargalhadas tornaram-se histéricas à medida que Chaplin dava trambolhões no seu papel de trapalhão com patins a tentar equilibrar-se dentro de um ringue. Por fim veio o filme principal, intitulado The Heart of the World. Era um trabalho de desca-rada propaganda patriótica, assinado por D. W. Griffith e rodado parcial-mente na frente francesa, mas depressa Afonso se desinteressou dos ares cruéis de Erich von Stroheim, no papel de um sádico oficial alemão, concentrando-se, em vez disso, no apetecível pescoço de Agnès. A francesa aceitou alguns beijos mais discretos, mas, quando o capitão se começou a empolgar demasiado, viu-se forçada a rejeitar delicadamente os impetuosos avanços, preocupada em não se transformar num espectáculo dentro do espectáculo.

“Pas ici”, sussurrou, apelando à paciência do amante. “Après Alphonse. Après.“ Quando o filme acabou, abandonaram a tenda da YMCA e seguiram para o Hôtel Boulogne, em Boulogne-sur-Mer, uma vilória a noroeste do sector português, na costa atlântica da Picardia, à entrada do canal da Mancha. Ambos tinham decidido que era inconveniente Afonso voltar ao Château Redier. Para além do desrespeito gratuito que significava dormirem juntos na casa do marido traído, havia o factor de risco a considerar.

Nenhum dos dois conseguia disfarçar em absoluto os seus sentimentos na presença do 268

outro, o que o barão inevitavelmente notaria, e, por outro lado, as escapadelas de Agnès para o quarto dos hóspedes acabariam também por serem constatadas pelo anfitrião ou pelos criados. Para tornear o problema, a baronesa disse ao marido que ia passar dois dias a Paris, e, fazendo coincidir esse “passeio” com a licença obtida pelo capitão no quartel-general do CEP, foram ambos para Boulogne-sur-Mer. O inconveniente era o de que, apesar de estarem relativamente longe de Armentières, deveriam evitar aparecer juntos em público, o que os obrigou a fecharem-se no seu quarto de hotel. Em boa verdade, porém, para Afonso isso não foi problema nenhum.