O Hôtel Boulogne serviu para darem largas à sua paixão. Amaram-se fogosa e repetidamente, aproveitando os intervalos para encomendarem refeições ou conversarem sobre tudo e sobre nada. Na manhã do segundo dia, Agnès mostrou-se interessada em conhecer o passado do seu amante, um interesse que não era novo mas que, desta vez, se revelou mais insistente.
“Mas para que é que queres saber a minha história? “, resistiu Afonso. “Não há nada de interessante para contar, ma mignonne.”
Agnès franziu o sobrolho, não ia deixar as coisas ficarem por ali.
“Hum, não me convences”, disse. “Qual é o problema de me contares o teu passado?“
“Não há problema nenhum, minha pardaleca. É só que não tenho nada de especial para contar. Acho que a minha vida se resume a três ideias principais. Nasci, cresci e conheci-te.“
“Desculpa, mas isso não é resposta. Não me queres contar, é? “ “Não há nada para contar, minha querida.“
Ela cerrou os olhos.
“Acho esse teu silêncio suspeito”, sentenciou. “Será que me estás a ocultar algo? Não me digas que és casado...“
“Eu? Casado? “, riu-se Afonso. “Não, meu amor. Não é nada de especial, a verdade é que não tenho particular prazer em falar de mim, percebes? “
“Não, não percebo. Acho que estás a esconder-me alguma coisa... “
“Não estou nada, filha. Acredita!”
Mas Agnès não acreditou. Irritada, fechou-se em si mesma. Encostou-se na cama a ler o enigmático À la recherche du temps perdu e não lhe prestou a mínima atenção.
Amuara. Afonso tentou quebrar o gelo com algumas graçolas, mas a francesa mostrou-se altivamente indiferente e permaneceu distante, aparentava estar apenas preocupada com a 269
descrição de Proust sobre o glamour da vida dupla de Swann, as bisbilhotices da tia Léonie, as possessivas soirées dos Verdurin, a conturbada relação com Odette de Crécy.
Ao fim de uma hora, receando desperdiçar-se daquela forma o tão promissor fim de semana, o capitão suspirou e rendeu-se. Encostado à cabeceira da cama, contou finalmente a sua história. Afonso relatou a infância na Carra-chana, a adolescência no seminário de Braga e a juventude na Escola do Exército. Despenderam a manhã a discutir o passado, comparando as educa-ções e a importância das viagens que ambos fizeram em pequenos às respecti-vas capitais, ele a Lisboa, ela a Paris. Perto do meio-dia, Agnès espreguiçou-se e ergueu- se da cama. Tinha seguido a narrativa com atenção, mas dava sinais de se encontrar cansada por permanecer tanto tempo encerrada no quarto do hotel, já lhe bastavam as intermináveis horas em que permanecia fechada no Château Redier, o que ela queria agora era mesmo espraiar-se. A manhã ia adiantada e a francesa, subitamente impaciente, incitou Afonso a dar um passeio.
“Já me contas o resto”, disse-lhe enquanto vestia o casaco. “ On va!” O capitão não transbordava de vontade de sair à rua não só porque encontrava no apertado quarto do hotel fartos e ricos motivos de interesse, mas também devido ao seu receio de serem ambos avistados por alguém próximo do barão Redier. A última coisa que lhes convinha é que o marido enganado descobrisse a verdade. O problema é que Agnès não queria saber dos argumen-tos aparentemente razoáveis que o seu amante com insistência lhe apresentou.
“Ninguém vem a Boulogne-sur-Mer para estar o tempo todo fechado no quarto”, sentenciou a baronesa num tom que não admitia mais discussão, abrindo a porta de forma decidida e mergulhando resolutamente no corredor. “Anda, mon chèri. “ Afonso resignou-se e não teve outro remédio senão acompanhar Agnès no seu passeio. Abandonaram o Hôtel Boulogne e foram passear pela Grande Place e por todo o sector histórico, situado no interior das muralhas da Haute Ville. Estava uma manhã fria e o sol espreitava timidamente por entre as nuvens. Foram à Basilique Notre-Dame ver a estátua de madeira de Notre-Dame de Boulogne, a patrona da povoação apresentava-se coberta de jóias, e seguiram até ao majestoso castelo poligonal construído no século xIII para os condes de Boulogne, apreciando o exterior todo em pedra e as elegantes janelas que espreitavam pelo telhado negro. Às duas da tarde saíram pela Porte des Degrés, onde admiraram as duas torres medievais que flanqueavam a ruela, e decidi-ram ir almoçar uma terrine de enguias e um foie gras au sauté com lagostim assado a um simpático restaurante de peixe instalado no cais Gambetta, as mesas com vista para o rio Liane, uns deliciosos craquelin de Boulogne para sobremesa.
270
“Ainda bem que não foste para padre”, sorriu Agnès no seu primeiro comentário à narrativa da manhã. “Era um desperdício.”
“Também acho”, concordou Afonso enquanto trinchava o lagostim com afinco.
“Não estava predestinado. “
A francesa fixou-lhe o olhar, maliciosa.
“Aposto que não deixaste essa tua namoradinha em paz”, testou-o.
“Qual namoradinha?“ perguntou ele, fazendo-se de sonso. “Essa Caro-line.“ Afonso engoliu em seco e esboçou um sorriso amarelo, meditando se estaria ou não a cometer um erro ao contar a sua história com tanto pormenor. Com as mulheres nunca se sabe, reflectiu, tudo o que lhes contamos pode virar-se contra nós. Mas a narrativa já ia a meio e não tinha agora modo de voltar atrás.
“Oh, foi uma coisa sem importância”, justificou-se, a face a encher-se com um rubor embaraçado.
“Hum, não sei se acredite”, disse ela com uma careta sorridente. “Mas conta-me o resto, vá.“
“Agora?”
“Pourquoi pas? “
O capitão passou toda a sobremesa a relatar a sua integração em Infantaria 8, os episódios da entrada de Portugal na guerra e a vinda para França. Concluiu a história após o café. Afonso pediu a conta, beijou Agnès, pagou, pegou no Hudson que tinha requisitado no CEP e levou-a num passeio pela costa.
Sentiram a perfumada brisa marítima encher-lhes os pulmões com as fragrâncias frescas do oceano quando o automóvel começou a serpentear pelas estradas marginais à Côte d'Opale até os conduzir à Colonne de la Grande Armée, a norte de Boulogne-sur-Mer. Admiraram de mão dada o monumento em mármore ali erguido, leram na inscrição que a obra tinha sido construída em 1841 para homenagear os planos elaborados por Napoleão para invadir a Grã-Bretanha e ficaram a saborear a bela vista panorâmica da costa até Calais, o grande porto francês perfeitamente visível daquele ponto. Como um casal de namorados, subiram ainda aos promontórios ventosos do Cap Gris-Nez e do Cap Blanc-Nez para apreciarem o mar bravo a bater lá em baixo na encosta escarpada, as manchas brancas dos penhascos da costa inglesa desenhadas entre o azul-escuro do mar e o azul-claro do céu. Viram o pôr do Sol na linha do horizonte, o astro alaranjado a mergulhar no canal da Mancha, e fizeram apaixonadas juras de amor. Quando o manto da noite se estendeu pela costa, meteram-se no carro e deram meia-volta para regressarem ao Hôtel Boulogne. Fazia-se tarde e teriam de viajar ainda nessa noite até ao hotel que reservaram 271
em Merville, uma vez que a licença do capitão estava a expirar e ele tinha ordens para se apresentar na brigada logo pela manhã.
Ao entrar no quarto do hotel, Agnès sentiu-se angustiada e frustrada pela brevidade da licença do seu amante. Queria permanecer com ele e via-se presa pelas correntes de um casamento que não desejava e de uma guerra que temia.
“Então, mon petit choux?“, preocupou-se Afonso, atencioso. Sentou- se ao seu lado e enxugou-lhe as lágrimas. Perguntou-lhe em português: “Estás com a mosca? “
“C'est quoi, ça?“, quis saber Agnès, não entendendo a pergunta. Afonso traduziu o que dissera e a francesa encostou a cabeça ao seu ombro.