“Estou aterrorizada”, disse. Soluçou. “Gosto de ti, Alphonse mas receio sofrer, sofrer muito, sabes? “
O capitão beijou-a repetidamente.
“Mas eu nunca te magoaria, minha flor. “
“Não digas isso, magoares-me não depende de ti, mas de Deus. Entendes?“ Soluçou, as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, agora abundantes. “Não depende de ti. “ Afonso puxou-a para si e apertou-a com mais força. “Mas o que se passa contigo? O
que tens? “
“O que tenho, Alphonse, é que vivo aterrorizada com a possibilidade de te acontecer o mesmo que sucedeu a Serge. “ Fungou. “O que tenho é medo de voltar a passar por aquilo que passei há três anos, de voltar a sentir-me perdida. “ Soluçou. “Não sei quem sofre mais, se aquele que vai para a guerra ou se aquela que o espera. É uma coisa... uma coisa que não tem descrição, um sofri-mento, uma ansiedade, uma inquietação... é terrível, terrível, sobretudo para quem vive isto pela segunda vez. “ A palavra “morte” não foi pronunciada, certamente devido ao receio supersticioso de que a sua simples referência atraísse o azar, mas o capitão não tinha dúvidas quanto à natureza dos medos de Agnès. A baronesa não o queria perder e agonizava com a aproximação da hora de se separarem, sofria com o início de mais uma semana de sobressalto, de angústia pela espera, de enervamento quando ouvia os canhões rugirem mais alto, de incerteza quanto à segurança do amante. Ele próprio sabia que havia a possibilidade de não estar vivo daí a pouco tempo, mas nada podia fazer a não ser aproveitar todos os instantes, saborear cada momento, viver para o presente, agarrar o que lhe dava a vida. Abraçou longamente a amante.
Quando ela se acalmou finalmente, levantou-se e foi arrumar as coisas. Fechar a mala revelou-se, todavia, uma tarefa mais complicada do que o previsto devido a um problema 272
com a fechadura. Afonso pôs-se a praguejar e a socar o couro. Por entre o esforço, ouviu Agnès a arranhar um português afrancesado.
“Tás ca mosca?“, perguntou ela.
Afonso riu-se e voltou a abraçá-la. O abraço transformou-se em volúpia e, instantes volvidos, amavam-se com fervor, gemendo e respirando com suspiros ofegantes, navegando um no outro, dando e recebendo, os sentidos despertos e inebriados. Toc-toc-toc. Uma batida na porta quebrou o feitiço, ainda tentaram ignorar a interrupção e voltar a concentrar-se em si, regressando ao mar da sua paixão. Toc-toc-toc. Assim não podia ser.
A nova batida obrigou Afonso a saltar irritadamente da cama. Agnès encostou-se à almofada, envolvida no lençol, enquanto o capitão vestiu rapidamente o roupão e, passando pelas roupas espalhadas pelo chão, foi ver quem era. Abriu a porta com irritada brusquidão e sentiu o sangue gelar e o coração parar.
Era o barão Jacques Redier.
“A minha mulher está?”
“Uh. perdão?”
O barão empurrou-o, entrou no quarto e encarou Agnès deitada na cama, coberta pelo lençol. O francês ficou rubro de fúria, mas conteve-se.
“Agnès, vamos para casa!”
A baronesa arregalou os olhos, fitando o marido. “Jacques! “
“Vamos embora, anda. “
Afonso foi prostrar-se à cabeceira da cama, preparado para defender Agnès em caso de necessidade.
“Senhor barão”, disse o capitão. “Lamento que tenha descoberto tudo desta forma, é realmente. “
“Não quero saber das suas opiniões e faça o favor de não voltar a dirigir-me a palavra”, cortou o barão sem o olhar. “Vamos Agnès. “
A francesa hesitou, mas acabou por se decidir. Levantou-se da cama, protegendo o corpo com o lençol, pegou nas roupas e fechou-se no quarto de banho sem dizer palavra.
Estabeleceu-se no quarto um silêncio confrangedor, Afonso e Redier evitando trocar olhares. O português, sem perceber ainda o que tencionava Agnès fazer, aproveitou para vestir rapidamente a farda, que se encontrava espalhada pelo chão.
Minutos depois, Agnès reabriu a porta do quarto de banho e reapareceu, já vestida.
Dirigiu-se para Afonso e sorriu com fraqueza.
“Desculpa, Alphonse, mas tenho de ir. “
Afonso sentiu o coração cair-lhe nos pés.
273
“Não acredito”, murmurou. “Vais com ele? “
“Desculpa. Tem de ser. “
“Mas porquê? “
“Ele é o meu marido. “
Afonso abanou a cabeça, angustiado, sentindo perder o pé. “Mas tu não o amas.
Como podes fazer isso? “
“Desculpa. “
Agnès deu meia-volta, cabisbaixa, pegou na sua mala e dirigiu-se à porta. Afonso agarrou-lhe o braço, desesperado. “Não. Não te deixo ir embora. “ O barão interveio, tentando afastá-lo.
“Meu caro senhor, tenha modos”, disse Redier. “Não ouviu a minha mulher? “ Afonso virou a cara para ele e depois para ela. Sentiu-se derrotado e largou-a. Redier puxou Agnès pelo cotovelo e tirou-a do quarto. A francesa ainda espreitou para trás, os olhos tristes, perdidos, suplicantes.
“Desculpa, Alphonse. Adeus. “
As horas seguintes foram difíceis para Afonso. Permaneceu os primeiros instantes colado aos vidros da janela do quarto, observando o barão a levar Agnès até à sua Renault amarela e o sedan a desaparecer pelas ruelas mal ilumi-nadas da cidade. Quando ela partiu, sentiu-se vazio. Ficou lungamente sentado na cama, deprimido, angustiado. Achou o quarto claustrofóbico e decidiu sair à rua.
Deambulou por Boulogne nessa noite cerrada, sem direcção nem rumo, mas não encontrou a tranquilidade que buscava, o coração apertava-se-lhe e experimentava até dificuldades em respirar. Sentiu-se só. A solidão abateu-se sobre si como um manto abafado, como uma porta que se fecha na prisão, como o sol que se esconde no Inverno.
Por mais que tentasse distrair-se, não conseguia deixar de pensar na sua francesa. Agnès enchia-lhe a mente, o seu rosto invadia-o, a sua memória doía-lhe. Magoava-o a forma como ela partira, quase sem hesitar, obediente ao marido, esquecendo a comunhão que ambos sentiram, ou julgaram sentir. Pensou que precisava urgentemente de fazer alguma coisa e, quase sem mais nem menos, desatou a correr, correu como uma criança, destemido, sem propósito visível, correu por correr, para se cansar, para se estafar, para esquecer. Mas a dor não abrandou. Mesmo ofegante, os músculos pesados, os pulmões arquejantes, mesmo assim ela permanecia presente.
Voltou para o quarto e acabou de meter as coisas na mala. Encontrou algumas peças de roupa de Agnès, perdidas por entre os lençóis, e cheirou-as, nostálgico. Quando terminou a arrumação, pegou na mala e abriu a porta. Lançou um derradeiro olhar pelo 274
quarto, relembrando a felicidade que aí vivera, estranhando a súbita mudança que se operara naquele cubículo, antes tão preenchido, tão feliz e cheio de vida, agora assim vazio, morto, insuporta-velmente triste, assustadoramente desolado. Não há dúvida, pensou, são as pessoas que fazem os lugares. Aquele quarto, que lhe parecia tão belo e alegre quando estava com Agnès, apresentava-se-lhe agora sombrio, deprimente. Tal como anos antes com Carolina, julgava valorizar mais Agnès agora que a não podia ter, agora que ela partira.
A diferença, porém, é que desta vez sempre soubera que a amava, dava-lhe valor, sentia-a insubstituível, única, e a sua ausência deixava-o devastado. Fechou a porta do quarto e arrastou-se pelo corredor, cabisbaixo.
Desceu as escadas e foi ter à recepção, pagou a conta e saiu à rua. Meteu-se no Hudson, colocou o motor a trabalhar e partiu.
Dirigiu-se para o Métropole, o hotel de Merville que tinha previamente reservado para passar essa noite com Agnès. Ainda considerou a possibilidade de não ir lá dormir, ser-lhe-ia penoso estar sozinho no quarto depois de todos os planos que arquitectaram juntos. Mas a verdade é que não tinha previsto qualquer boleto, pelo que teria mesmo de ir para o hotel. Deu entrada no edifí-cio, preencheu o formulário de cliente, pegou na chave e subiu até au quarto.