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Como previra, a noite foi longa e difícil. Deu voltas e reviravoltas na cama, tentou distrair-se, pensar noutras coisas, fantasiar outras mulheres, mas Agnès enchia-lhe o pensamento, não havia como fugir-lhe. Repetidamente disse a si mesmo que tinha de dormir, tinha de aproveitar enquanto estava na reta-guar-da, no dia seguinte iria para as trincheiras e passaria uma semana sem quase conseguir pregar olho, mas era escusado, o pensamento voltava-lhe sempre ao mesmo. Recapitulou todas as suas conversas juntos, tudo o que ela lhe disse, tudo o que tinham partilhado, procurou meter-se na sua cabeça e adivinhar-lhe o raciocínio e os sentimentos. Desesperava em alguns instantes, convencido de que a perdera para sempre. Enchia-se de esperança noutros, crendo que ela voltaria.

Interrogava-se longamente sobre o que ele próprio deveria fazer. Deveria procurá-la?

Deveria aguardar? Deveria escrever-lhe? Como provocar-lhe saudades? O que fazer? Mil interrogações cruzaram o seu espírito, mil dúvi-das, mil certezas, mil angústias. A cabeça fervilhava-lhe de ideias, procurava soluções, testava decisões, arquitectava planos, ensaiava opções e imaginava emocionantes discursos, palavras belas e arrebatadoras a que ela não resistiria.

Às quatro da manhã, esgotado e desanimado, levantou-se e foi fazer a barba. Tinha de se apresentar no acantonamento para preparar a partida para a zona da frente e não lhe restava muito tempo. Vestiu a farda, pegou na mala e saiu. Sentia os olhos cansados, 275

pesados, a arderem de sono, na ressaca da noite que não dormira. Bocejou. Percorreu vagarosamente o corredor, desceu indo-lentemente as escadas e encostou-se com abandono ao balcão da recepção.

“L'addition, s'il vous plait”, pediu.

O recepcionista, igualmente meio- ensonado, foi buscar o caderno das despesas para lhe apresentar a conta.

“Qual é o seu quarto? “

“É o 106”, retorquiu Afonso, estendendo negligentemente a chave.

O empregado pegou na chave e voltou-se para o cacifo para a depositar na respectiva caixa. Viu um papel na caixa do quarto 106. O homem pegou nele e consultou-o brevemente.

“Ah, monsieur”, exclamou. “Já me esquecia. Está uma senhora na sala de estar à sua espera.”

O sono desvaneceu-se num instante.

“Uma senhora?”

“Sim, chegou há uma hora para falar consigo. Eu disse-lhe que tinha ordens para não acordar ninguém àquela hora e ela foi ali para a sala de estar. Pediu para o avisar quando descesse. Afonso largou a mala e caminhou rapidamente para a sala de estar, o coração aos pulos, ansioso e excitado. Abriu a porta do salão e viu um vulto estendido sobre um canapé, a dormitar. Era Agnès.

“Agnès”, chamou. “Agnès. “

Ela estremeceu e abriu os olhos. “Alphonse”, disse. “Estás bem? “ A francesa sorriu timidamente e ergueu-se, tentando abraçá-lo. Inexplica-velmente, tomado por um orgulho inesperado, Afonso recuou, evitando-a. Ela ficou pasmada a olhá-

lo, ferida com aquela reacção inesperada.

“O que desejas? “, perguntou ele, magoado e ressentido. “O que desejo? Mas, é evidente, desejo-te a ti. “

“Não foi isso o que disseste ontem... “

“Ontem estava Jacques ao pé de mim, numa situação terrível. Não o podia deixar assim, como um trapo velho, ele que tanto me ajudou. Tens de compre-ender isso. “

“Ah sim? E quem me compreende a mim? Ficaste com ele para não o ofender, mas não te preocupaste em ofender-me a mim. “

“Alphonse, olha para mim”, ordenou-lhe, o rosto muito sério. “Jacques ajudou-me muito quando eu estava perdida, deu-me a mão e tirou- me de uma situação muito difícil.

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Não posso fingir que isso não aconteceu. Além disso, a ingratidão não é coisa de que eu seja capaz. “

“Muito bem, tu é que sabes. Mas, se o escolheste, tens agora de assumir a tua opção, não podes andar a brincar com os meus sentimentos. “

“Alphonse, não sejas criança. Estou aqui, escolhi-te, o que mais queres? “

“A escolha já a fizeste em Boulogne. Está feita, não venhas agora fingir que nada se passou. “

Agnès ficou a olhá-lo durante alguns longos segundos, avaliando a situação, procurando decidir-se. Ao fim de uma interminável pausa, suspirou.

“Muito bem, vejo que não me queres. Não vale a pena insistir. Deu meia-volta e dirigiu-se resolutamente para a porta. Au revoir, Alphonse. “ O capitão permaneceu pregado ao chão, vidrado a vê-la partir, abismado com a sua própria reacção. Desejava-a ardentemente, nada mais queria na vida que não fosse a reconciliação, aquele encontro ressuscitava-o do pesadelo em que mergulhara na noite anterior. E o que fazia ele? Rejeitava-a, repelia-a, ignorava-a. Sentiu um incontrolável orgulho a prender-lhe o coração e a toldar-lhe a razão, compreendeu que o seu comportamento se tornara refém desse incomensurável sentimento, egoísta e arrogante, mas sentia-se impotente para o superar. Acima de tudo, desejava tornar difícil a sua rendição, fazê-la sofrer, mostrar- lhe que não podia dispor dele como queria, provar-lhe que o que lhe fizera tinha consequências. O problema é que quem sofria era ele. Com o coração desfeito, viu-a sair da sala de estar e desaparecer para além da porta. Sentiu-se confuso, experimentou sensações contraditórias, o coração enfrentou o orgulho, o peso do mundo desabou-lhe sobre os ombros, a respiração tornou-se-lhe ofegante, pesada, aflitiva.

Agitou-se, torturado pela dúvida, dividido quanto ao que fizera e quanto ao que teria de fazer. Sentiu os segundos a esgo-tarem-se, cada segundo a afastá-lo de Agnès, cada instante a tornar irrevogável a separação. Torturado por um doloroso conflito interior, deu três passos em frente, parou, recuou, voltou a avançar, quase em corrida, parou novamente, a indecisão dilacerava-o. Depois de uma derradeira hesitação, o coração venceu. Largou em corrida, atravessou os corredores, passou pela recepção e saiu do hotel. Viu Agnès a subir para uma caleche e receou que ela partisse sem o ver.

“Agnès! “, gritou, a voz a ecoar pelas ruas desertas de Merville naquela hora madrugadora. “Agnès! Attends! “

Por um longo segundo pareceu-lhe que ela o ignorava. Mas a baronesa imobilizou-se quando subia para o seu lugar e voltou a cara, enfrentando-o. Afonso aproximou-se em corrida.

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“O que desejas? “, perguntou-lhe ela, expectante. O capitão chegou-se à caleche, ofegante, o peito a subir e a descer, buscando ar.

“Espera”, arfou. Parou para recuperar o fôlego. “Desculpa o que te disse. “ Engoliu em seco. “Ficas comigo? “

Ela fitou-o com intensidade.

“Estás a falar a sério? “

“Nunca falei mais sério na minha vida. Ficas comigo? “ Fez um ar de súplica. “Por favor... “

O rosto abriu-se-lhe num largo sorriso.

“Claro que fico, meu pateta! “

Agnès desceu da caleche e caiu-lhe nos braços. Beijaram-se sofregamente, felizes, aliviados. Afonso enlaçou-a e levou-a de volta ao hotel, apertando-a muito contra si, as cabeças inclinadas uma para a outra, tocando-se com ternura. Pediu de novo as chaves ao recepcionista, com o braço livre pegou na mala que abandonara junto ao balcão, subiram as escadas agarrados um ao outro, o capitão colocou a chave na fechadura, abriu a porta, atirou a mala para a direita, fechou a porta e caíram ambos na cama.