Выбрать главу

Fizeram amor devagar, com carinho, com paixão, emocionados, reconci-liados, as mãos sempre enlaçadas umas nas outras. Permaneceram depois um longo tempo abraçados, fruindo o momento, trocando sussurros e carícias. Quando o Sol finalmente nasceu, Afonso suspirou e olhou para o relógio.

“Meu amor, é terrível mas tenho mesmo de ir”, disse. “Tens de ir onde? “ Afonso suspirou.

“Tenho de me apresentar no batalhão, a minha licença está esgotada. “

“Vais para as trincheiras? “

“Vou. “

“Não podes esquecer-te de ir? “

“Poder, posso, mas isso teria consequências. Seria punido disciplinar-mente e, pior do que isso, retirar-me-iam a licença que me deram para depois do Natal. Achas que vale a pena? “

Agnès cerrou os olhos.

“Não. Se tens de ir, vai. “

“Não fiques zangada, é o meu dever. “

A francesa sentou-se na cama de costas para ele, tapou a cara com as mãos e começou a soluçar.

“Vai.“

278

Afonso aproximou-se, agarrou-a pelas costas e beijou-a no pescoço.

“Tem calma, meu amor, tem calma”, murmurou com os lábios colados aos ouvidos.

Agnès soluçava, amargurada. Tirou as mãos da cara e enfrentou-o, os olhos de um verde luminoso, brilhando entre as lágrimas.

“E se te acontece alguma coisa, mon mignon? O que será de mim? Como poderei viver?”

“Não me acontece nada, minha querida, fica descansada. “ “Mas isso não depende de ti, pode acontecer. Olha o Serge...“ “Não, minha flor, eu fui desta-cado para os serviços administrativos”, mentiu-lhe ele num repentino e inspirado improviso.

“Ouviste? Já não estou envolvido em combates, apenas na papelada, na burocracia. “ Ela afastou a cabeça e olhou-o nos olhos, procurando a verdade.

“Vraiment? “

Afonso susteve o olhar apenas o suficiente e depois puxou-a para si, receava que os olhos se descaíssem e traíssem a mentira.

“Claro, ma petite. “ Apertou-a no abraço e depois mirou-a novamente. “Eu volto”, garantiu-lhe com um sorriso. “Nem que me matem “

279

VIII

Os soldados abriram a boca de espanto, os olhos fixos no céu num esgar de assombro. Uma vasta cortina de luz enchia o firmamento, desenhando um fantasmagórico arco de cores que se perdia nas alturas. O clarão luminoso dançava em silêncio, como um harmónio majestoso e grandioso, a profunda treva celestial pintara-se com manchas de luz amarela, verde, vermelha, azul até, era coisa nunca vista, visão de embasbacar, uma maravilha que enchia de fascínio ou de terror os homens na terra. A cascata brilhante e colorida desli-zava suavemente, muito devagar, num lento e ondulante movimento, cheia de mistério, sublime de imponência. Um murmúrio respeitoso ergueu-se de Ferme du Bois, diversos lãzudos caíram de joelhos a rezar, havia mesmo quem tre-messe de medo, Deus manifestava-se, a Virgem regressava, ou então, pensavam certos soldados mais supersticiosos, era a fúria do além que estava prestes a ser desencadeada sobre si, miseráveis pecadores mergulhados na lama e na neve. Alguns homens, passado o estupor inicial, começaram a gritar e a fugir pelas trincheiras, receavam o castigo divino, outros permaneciam pregados ao solo a contemplar aquele vasto incêndio celeste que iluminava a noite como uma fogueira gigante.

“Uma aurora boreal”, comentou Afonso, encantado com o singular espectáculo que o céu lhe proporcionava.

Era a noite de 20 para 21 de Dezembro, o batalhão tinha, horas antes, acabado de se instalar nas trincheiras para enfrentar um inimigo mais desgas-tante do que os alemães. O

frio. O Natal aproximava-se e um gelo incrível abateu-se sobre toda a Flandres. Afonso batia com os pés no chão, junto ao fogo aceso no grande recipiente cilíndrico instalado no chão do posto, tentando desesperadamente aquecê-los naquele frio glaciar, nunca tinha visto coisa assim, as manhãs geladas de Braga pareciam brisa tépida quando comparadas com aquelas condições polares. De mãos enluvadas apertadas dentro dos bolsos do sobretudo e densas nuvens de vapor a serem expelidas pelo nariz e pela boca, o capitão levantou-se e foi aos saltinhos verificar a temperatura no termó-metro que se encontrava pregado na parede lamacenta do posto. O mercúrio registava quinze graus abaixo de zero e Afonso percebeu o conceito da morte de frio. Tremer de frio, como tantas vezes tremeu em Rio Maior, e sobretudo em Braga, não era frio, era mera frescura incómoda. Frio verdadeiro era aquele, era frio que não fazia tremer, antes feria a pele, dilacerava a carne, ras 280

gava o corpo, era frio que queimava, que doía, que paralisava, que entorpecia, era frio que lhe fazia arder a cara, que lhe roubava o ar, que lhe adormecia as mãos num torpor de insensibilidade, que lhe arrancava uivos doloridos como se lhe estivessem a espetar facas na pele, que escaldava o corpo com um ardor tão forte ao ponto de se confundir com fogo, que lhe inchava e magoava os dedos até às lágrimas, frio verdadeiro era aquele que o torturava lenta e longamente em Ferme du Bois, a ele e a todos os desgraçados que o CEP

enviara para a frente.

O aparecimento da aurora boreal nessa noite suspendeu pur um par de horas as hostilidades em terra, como se os soldados temessem que os actos de guerra fossem iluminados por aquela estranha luz que se manifestava no firma-mento. Mas logo que o fogo divino desapareceu, as trincheiras despertaram do seu torpor e reapareceu o fogo humano. As linhas inimigas recomeçaram a trocar ocasionais tiros de canhão ou metralhadora, mas era fogo de rotina, disparos destinados a lembrarem aos soldados de ambos os lados que a guerra não acabara. Vinha aí o Natal e era muito improvável que ocorressem agora operações de grande envergadura, não só necessariamente devido à época festiva, mas também porque o Inverno aparecera inclemente, havia neve e lama por toda a parte, não era prático a infantaria avançar naquele tipo de solo, onde o progresso das tropas se revelava lento e os reabastecimentos difíceis. Com o estado do terreno a impossibilitar qualquer ofensiva em larga escala, o principal adversário dos lãzudos passou a ser aquele frio cruel que os cercava e parali-sava, era contra ele que tinham agora de combater as tropas esfarrapadas que viviam na lama das trincheiras.

No calendário fixado na parede húmida do posto, Afonso contava repetidamente os dias que lhe restavam nas trincheiras. Iria ali passar o Natal e só sairia a 28, era uma eternidade, mas não havia remédio. Para se distrair sentou-se no banco e releu a Ordem de Operações n. 12 destinada ao seu batalhão. O 8 ocupava agora, e durante uma semana, justamente a do Natal, o subsector S.S. 2. ou Ferme du Bois II, e o capitão passou os olhos pelas instru-ções assinadas na véspera pelo comandante interino da brigada, o tenente-coronel Eugénio Mardel. “A companhia avançada da direita guarnecerá os postos Boar's Head e Cockspur, com o comando da companhia em 5. 15. b. 50. 95. A companhia avançada da esquerda guarnecerá os postos Vine, Copse e Goat, com o comando da companhia em S. 15. a. 65. 40. “ Muito interessante, pensou, bocejando. “O batalhão do 8

ocupará o posto de observação Savoy (S. 9. d. 08. 18. ), que lhe será entregue pelo chefe dos observadores do batalhão do 3.“ Afonso verificou no mapa a localização do posto Savoy. “Terminada a ocupação dos novos subsectores, o batalhão do 8 e do 3 comunicá-lo-