Выбрать главу

ão a este Comando, respectivamente pelas palavras Barcellos e Valença pelo telégrafo. “ O

281

capitão tomou nota do código Barcellos. “No S. S. 2. o depósito de munições de St. Vaast remuniciará pela decauville de St. Vaast e directamente a companhia da esquerda. O

depósito de munições de King's Cross remuniciará pela decauville da Rue du Bois directamente as companhias da direita e apoio. “ Afonso procurou na carta os paióis de St.

Vaast e King's Cross e verificou que St. Vaast ficava mesmo por trás de Lansdowne, o seu posto, o que o pôs nervoso. Convinha que nenhuma granada inimiga ali caísse, seria um fogo-de-artifício memorável.

Quando acabou de estudar a ordem de operações, deitou-se no catre, cobriu-se com uma manta, fechou os olhos e deixou a sua mente vaguear melancolicamente até Agnès.

Percebeu que entre eles já nada seria como dantes, tinha sido dado um passo irreversível, incontornável, os seus destinos estavam agora irrevogavelmente cruzados. Compadeceu-se com a preocupação que ela revelara por si, pela sua segurança, mas não tinha dúvidas de que por detrás daqueles receios de mulher pela vida do homem ao qual se entregava se escondia a firmeza de quem encontrara o seu caminho. O capitão admirou-lhe a determinação, a coragem, aquela não era uma mulher de lamechices, parecia delicada como uma flor mas era afinal dura como uma rocha. Isso assustou-o um pouco, esperava que as mulheres fossem todas dóceis, submissas e frágeis, era assim que se educava em Portugal, mas esta francesa era tesa e o português surpreendeu-se a si mesmo por sentir que tal até lhe agradava. Aquela determinação que se lhe lia nos olhos era ao mesmo tempo assustadora e admirável, o que, inexplicavelmente, o fazia amá-la ainda mais. Era como se temesse que um dia ela o abandonasse com a mesma ligeireza com que agora se afastava do marido, como se mudar de vida fosse tão fácil como virar a página de um livro, não há dúvida de que, nestas coisas de romper as relações, as mulheres são mais corajosas do que os homens. Encarando-a deste modo, o capitão começou a perceber que para amar uma pessoa era preciso admirá- la.

Matias Grande accionou a bomba manual e começou a despejar a água, num esforço para drenar a trincheira. Curvado ao lado, Vicente Manápulas ajudava-o com um balde, enchendo-o de lama gelada e atirando-a para lá das linhas de circulação.

“Esta porra tá sempr'a encher”, resmungou Vicente de frustração, as pernas mergulhadas na lama até ao joelho. “Os cabrões dos boches não páram d'atirar água p'rá'qui. “

“Os boches?“, admirou-se Matias. “Ó Manápulas, lá estás tu nesse refilanço trapalhão. Ora diz-me lá que culpa têm os boches deste tempo desgraçado? “

“Então não vês a posição deles? “, perguntou Vicente, apontando para a elevação de terreno no outro lado da terra de ninguém, mesmo em frente a Neuve Chapelle, o sector 282

vizinho da esquerda. “Não vês qu'os gajos ocupam uma posição mais elevada do qu'a nossa? “

“Ah sim? E depois?”

“E depois? E depois, disseram-me qu'os tipos também têm bombas e usam-nas p'ra despejarem água p'ró nosso sector”

“Ah é? E quem é que te disse isso? “

“Ouvi uma convers'entre dois oficiais no estaminet. “ Matias parou o trabalho de faxina e olhou para o sargento Rosa, que descansava encostado a uns sacos de terra.

“Meu sargento, dá licença que suba a espreitar o inimigo? “ O sargento fez um gesto displicente e Matias galgou ao parapeito, donde espreitou fugazmente a posição alemã. O

manto de neve cobria toda a linha da frente, a terra de ninguém e o sector inimigo, situado por entre o carbonizado arvoredo do Bois du Biez. Varrendo o terreno com os olhos, constatou que, de facto, as poças de lama e de água não se encontravam na elevação de terreno ocupada pelos alemães, mas cá em baixo, junto às linhas portuguesas.

“É mesmo”, confirmou o cabo, recolhendo a cabeça e voltando para o seu posto de trabalho. “Não só temos de gramar com as bombas dos gajos, ainda levamos com a lama daqueles cabrões.“

“Já vist'o estad'em que tá'li a Rue de Puits, mesm'atrás d'Euston Post?“

“Então não vi? A lama dá pelo peito, caraças. Disseram-me que, há uns tempos, morreu ali um bife afogado.“

Concentraram-se no trabalho, momentaneamente em silêncio. “Isto é uma porra”, desabafou Matias, esforçando-se por manter a bomba manual a drenar a trincheira.

“Mas olha lá, ó Matias, tu és cabo, não tens qu'estar aqui a tirar lama.“ O matulão de Palmeira encolheu os ombros.

“Não me importo”, disse. “Se eu não viesse, ainda mandavam o Velho ou o Lingrinhas, e esses não aguentavam, caraças. Estão derreados.“ O cabo endireitou-se na trincheira, repousando por instantes do trabalho de retirar a água e a lama. Tirou um frasco de rum do bolso e engoliu um golo.

“Ahhh, esta murrilha é um achado”, considerou Matias, expelindo um bafo quente e vaporoso.“Até parece que se acende uma lareira cá dentro. “

“Dá cá um bocado.“

Matias Grande atirou o frasco e Vicente bebeu um longo trago de rum.

“Caramba, homem”, protestou Matias. “Não emborques tudo. Olha que ainda apanhas uma valente naça e cangas para aí. “

283

“Ora, não t'apoquentes”, devolveu o Manápulas, limpando a boca ao braço. “Vai sobrar muita desta mascambilha, vais ver. “

Matias olhou com desalento para o rio de lama que enchia a trincheira.

“Amanhã é véspera de Natal e vamos passá-la aqui atolados na lama como marranos”, desabafou. “Já viste esta merda? “

“Nem me fales nisso. O que val'é qu'eles vão trazer bacalhau. “Bacalhau? Que bacalhau? “

“Ó Matias, andas mesmo distraído. Então não sabes qu'a ração da consoada vai ser bacalhau? “

“Não me digas! “, exclamou Matias, a água a crescer na boca. Estava farto do corned-beef e das pies, e uma posta de bacalhau com batatas e azeite vinha mesmo a calhar. “E

isso é amanhã? “

“Espero que sim”, riu-se Vicente, devolvendo o frasco de rum. Matias guardou o frasco no bolso e regressou ao trabalho com redobrado entusiasmo.

“Isso é que vai ser”, disse, accionando vigorosamente a bomba. “Só faltava mesmo era os boches serem uns compinchas e darem-nos um dia de descanso. “

“Acho qu'é normal não haver guerra no Natal “ “Também já ouvi isso, mas não acredito. “

“A mim quem mo disse foi uma buscate de Béthune. Ela contou-m'até que no Natal é sempr'uma fest'aqui nas trinchas, o pessoal cumpriment'os boches, vai ali p'rá Avenid'Afonso Costa e até se jog'à bola. “

“E tu acreditas nisso? “, riu-se Matias.

“Bem. “

“A malta a jogar à bola com os boches na Afonso Costa? Isso é tudo conversa para enganar tolos. Ó Manápulas, és mesmo um zinão. “

O sargento Rosa agitou-se no seu repouso de sacos de terra. Era ele o graduado encarregado de vigiar aquela obra. Tratava-se de um trabalho de menor importância, caso contrário ter-lhe-iam dado quatro, cinco ou até quinze homens, mas estava determinado a fazer sentir a sua autoridade. Foi, por isso, com esforço e elevado sentido de dever que entreabriu um olho para repreen-der os dois homens às suas ordens.

“Então, rapazes?“, resmungou preguiçosamente. “Vamos lá, menos paleio e mais trabalho.“ Bocejou. “Depois das drenagens, temos ainda de fazer reparações nos paradorsos, nos traveses e nas banquetas. “ Remexeu o corpo, procurando uma posição mais agradável, e voltou a recostar-se, indolente, nos confortáveis sacos de terra. “Portanto, é despachar, é despachar. “