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Fechou os olhos, bocejou de novo e retomou a sesta.

A véspera de Natal nasceu calma. Tímidos raios de sol atravessaram a bruma húmida e banharam de luz fria a neve reluzente de Ferme du Bois, mas apenas por um breve instante.

Pesadas nuvens escuras apressaram-se a cortar- lhes o caminho, ciumen-tas, bloqueando a luz e envolvendo a martirizada planície da Flandres num sombrio e monótono manto cinzento. O termómetro registava um grau abaixo de zero, nada mau para quem viu muito pior havia apenas alguns dias, mas o que mais impressionou Afonso foi o silêncio sepulcral que se abateu sobre a zona de guerra, não se ouvia um único tiro nas trincheiras.

“Bom dia, Joaquim”, disse, cumprimentando a ordenança à saída do seu abrigo, o posto de Lansdowne, situado junto a Forresters Lane, uma perpen-dicular a sul da Rue de la Bassée.

“Feliz Natal, meu capitão”

“Feliz Natal. Isto hoje parece calmo, hem? “

“Sim, meu capitão. “

Afonso seguiu para uma ronda pelas linhas e foi saber como tinha sido o A Postos da manhã, a formatura efectuada uma hora antes do nascer do Sol. Meteu pela Forresters Lane em direcção a norte, como se fosse para Neuve Chapelle, desceu pela Rue de la Bassée e virou para dentro na Rue du Bois. Cruzou-se no caminho com o tenente Pinto.

“Ora viva!”

“Feliz Natal, Afonso. “

“Boas festas, Cenoura. Tudo bem no A Postos? “ “Uma maravilha. Nem um tiro “

“Isto hoje promete”

“Se promete. Já viste esta calmaria? Disseram-me que no Natal é sempre assim. “

“ Quem é que te disse isso?”

“O teu amigo inglês”

“ O Tim? Onde está esse sacripanta?”

“Anda por aí “

Afonso seguiu pela trincheira lamacenta de Pioneer's, o bengalão de ponta metálica na mão, Joaquim no encalço. Aquele era o primeiro Natal das tropas portuguesas na zona de combate e a quadra parecia contagiar toda a gente, viam-se sorrisos, havia alegria nas trincheiras. A manhã permaneceu tranquila, com os homens a limparem as armas e a bombearem a água e a lama para fora das passagens. Depois do almoço, Afonso foi inspeccionar o sector de Port Arthur e deu em Pope's Nose com o tenente Cook e um 285

outro oficial britânico calmamente sentados no topo do parapeito e virados para o inimigo, à mercê das balas alemãs.

“Então, Tim, estás maluco ou quê? Sai já daí. “ “Xhat ho, Afonso, old lad. Merry Christmas “

“Merry Christmas para ti também, mas faz-me o favor de sair daí, tu e o teu amigo.

Ainda levas um balázio. “

“Você descontraia, Afonso”, sorriu o tenente Cook, falando com o seu característico sotaque brasileiro. “Está todo o mundo fazendo o mesmo “. Apontou em redor. “ Olhe para ali, os soldados portugueses estão no relax. “

Afonso pôs o pé no degrau do parapeito, esticou a cabeça e abriu a boca de espanto, viam-se lãzudos espreguiçando-se languidamente no topo dos parapeitos, ignorando com calma olímpica as letais miras alemãs.

“Mas está tudo louco! “

“Calma, Afonso”, disse o inglês. “Hoje é véspera de Natal e as trincheiras costumam ficar tranquilas, é assim todos os anos”. Apontou para o sector inimigo. “Além do mais, você está vendo? Há neblina ali em frente, os boches não nos conseguem enxergar. “ Um denso vapor pairava de facto na terra de ninguém, reduzindo forte-mente a visibilidade. O arame farpado misturava-se com as nuvens baixas, a neve perdia-se na claridade alva da neblina. Afonso encolheu os ombros, resignado, e, com movimentos hesitantes e desconfiados, escalou o parapeito e sentou-se junto dos oficiais britânicos.

“Captain Gleen, this is captain Afonso”, apresentou-os o tenente Cook. “Afonso, este é o capitão Gleen. O capitão foi destacado pelo Alto Comando para o período do Natal “

“How do you do? “, saudou Afonso.

“Howdy, mate. Merry Christmas. Compris Christmas? “

“Yes. “

“Christmas bonne”, riu-se o capitão Gleen, as faces rosadas a encherem-lhe o rosto cheio. “Beaucoup rhum, beaucoup champagne, beaucoup port-wine. Et beaucoup zig-zag!

“ Fez um gesto com a mão, simulando um movimento de embriaguês. “Compris?

Beaucoup rhum, beaucoup zig- zag! “

“Compris. Zig-zag. Compris”, devolveu Afonso com uma gargalhada, divertido com o trapalhão patois de inglês e francês tão típico das trincheiras. Voltou-se para o tenente Cook. “Ó Tim, este gajo está com os copos ou quê? “

“Ele é mesmo assim”

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“Ah bom”, exclamou. Mirou a neblina, ainda pouco à vontade por estar ali a descoberto, perfeito alvo para os franco- atiradores alemães, sentia-se como se estivesse nu.

O problema é que ninguém parecia dar grande importância à posição vulnerável onde se encontravam, pelo que não seria ele a dar parte de fraco. Para se abstrair da desconfortável sensação de perigo decidiu alimentar a conversa. “O que é isso de o teu amigo ser destacado durante o período de Natal? “

“O capitão Gleen já viveu três Natais nas trincheiras e o primeiro foi mesmo aqui ao lado, em Neuve Chapelle. O Alto Comando achou que ele poderia ser-nos útil com todo o seu know-how. Assim poderia ajudar-nos com os acontecimentos desta quadra.

Os acontecimentos desta quadra. Que acontecimentos?”A confraterni-zação com o inimigo. O Alto Comando anda preocupado com isso. “

“Confraternização? Que conversa é essa?

“Eu acho que é melhor ser ele mesmo a contar-te”, disse o tenente Cook, mudando a conversa para inglês. “Captain, pode dizer aqui ao nosso amigo português o que aconteceu no Natal de 1914?

“Christmas 1914 “, repetiu o oficial britânico, os olhos a encherem-se-lhe de nostalgia. “Foi um Natal extraordinário. Extraordinário”. O capitão Gleen retirou do bolso uma caixa amarela de cigarros, Gold Flalze escrito no topo, acendeu um cigarro, largou uma baforada e fixou os olhos no infinito. “A guerra durava havia apenas quatro meses quando chegou o Natal de 1914. Eu era na altura um corporal dos 18th Hussars destacado num regimento indiano de cavalaria dos Royal Garhwal Rifles e estávamos barricados mesmo aqui em Neuve Chapelle, justamente nestas trincheiras onde estão agora os portugueses. Houve violentos combates até ao dia 24, com os jerries a atacarem a 20, os indianos a recuarem a 22 e o nosso Corpo a responder e a reocupar posições. O tiroteio prolongou-se durante a véspera de Natal, mas, quando a noite caiu, os combates pararam totalmente e ficou tudo silencioso. Um silêncio como este, neste momento.“ Girou a mão em redor. “De repente, no meio da escuridão, começámos a ver luzes a acenderem-se ali do outro lado.“ Apontou. “Eram filas e filas de luzes. Lançámos um very light e vimos que os jerries estavam a colocar pequenas árvores de Natal iluminadas ao longo do topo dos parapeitos. Nós e os indianos ficámos embasbacados a olhar. A nossa rapaziada começou a dizer que era o divali, o divali. Perguntei-lhes o que era isso do divali e eles explicaram-me que se tratava da mais importante festa do calendário hindu, dedicada a uma deusa qualquer ligada à riqueza. Foi uma noite curiosa, mas as coisas ficaram por aí “

“Isso foi na véspera de Natal”, atalhou Afonso, meio perguntando, meio afirmando.

“Indeed”, assentiu.

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“ E no dia de Natal?”

“Bem, aí foi diferente. A manhã de 25 nasceu gloriosa, estava um dia maravilhoso, o Sol brilhava alto no céu, a chuva da Flandres tinha miraculosa-mente desaparecido. A dado momento, os jerries começaram a cantar. Eram prussianos do VII Corpo e cantavam em coro, alguns com magníficas vozes de tenor, até nos arrepiávamos. Ouvíamo-los a entoarem o O Tannenbaum, o Stille Nacht, Heilige Nacht, o O du Frhliche, todos muito afinados, cheios de coração, de emoção. Como eram prussianos, e consequentemente militaristas, não se esqueceram, claro, das canções nacionalistas, em especial do Xacht am Rhein e do Deutschland iiber Alles. Parece que os estou a ouvir... “ O capitão Gleen calou-se por um instante, mergulhado na memória daqueles momentos.