“Vocês responderam? “, quis saber o tenente Cook, quebrando o silêncio.
“Os indianos não. Ficaram calados a ver. Mas alguns oficiais britânicos entoaram baixo o Tipperary. Estão-nos a ver a cantar Its a long Way to Tipperary?“ Riu-se. “Bom, pelo meio-dia começámos a vê-los a fazerem passear sobre as trincheiras cha péus e capacetes pendurados na ponta de paus. Depois puseram-se a espreitar pelos parapeitos, primeiro a medo, a seguir erguendo as cabeças com crescente confiança. Nós estávamos especados a vê-los.“
“Ninguém disparou?”
“Ninguém disparou. Acho que achámos que, naquelas circunstâncias, isso seria assassínio a sangue frio. Começaram então a gritar em inglês, desejando-nos um feliz Natal.
A Happy Christmas to you all! berravam. Alguns até tinham sotaque cockney, dá para acreditar? Outros gritavam Friede aufder Erde. Eu arranho algum alemão, mas não entendi.
O capitão Collins, que era fluente em alemão, disse-me que isso significava paz na Terra.
Não lhes respondemos. Uma hora depois repetiram a graça. Puseram-se aos gritos de Happy Christmas e, a dado momento, colocaram-se em pé sobre os parapeitos, desarmados, totalmente à mercê das nossas espingardas e metralhadoras. Nós estávamos siderados. Os soldados apontaram as Lee- Enfield para darem cabo dos prussianos mas o capitão Collins deu uma ordem a proibir que se disparasse. Ficou tudo em suspenso, eles a acenarem, nós quietos. A situação era anormal e, meio hesitantes, alguns dos nossos homens puseram-se também de pé e acenaram, o que provocou uma festa do lado dos jerries. Eles gritaram a dizerem que tinham charutos para nos oferecerem e que nós fôssemos lá, que não disparariam, que era Natal. Ficámos desconfiados. Houve então um prussiano que pegou numa caixa de charutos, saltou para a terra de ninguém e veio por ali fora na nossa direcção
“ O capitão Gleen apontou para um ponto à esquerda, algures na terra de ninguém coberta 288
de neblina. “Veio por ali, parece que o estou a ver, o pickelhaube na cabeça, uma gabardina cinzenta cheia de lama, a caixa de madeira ao peito, segura pelas duas mãos como se fosse um tesouro. Uma vez que ninguém se mexia, eu saltei também para a terra de ninguém e fui ter com ele por ali.“ Apontou para a esquerda, indicando o ponto da trincheira de Neuve Chapelle que ocupara nessa tarde memorável. “Eu ia nervoso, as pernas tremiam-me, sentia espingardas invisíveis apontadas à minha cabeça, ao meu peito, às minhas pernas. Ainda pensei em dar meia-volta e desatar a correr, mas controlei-me e segui em frente, perguntando mil vezes o que estava a fazer no meio da terra de ninguém.
Encontrámo-nos ali no centro, junto ao arame farpado. Ele entregou-me a caixa e disse-me a Happy Christmas to you. Fiquei sem jeito, sem saber o que fazer ou dizer. Estiquei-lhe o braço e apertei- lhe a mão, disse-lhe danke schn und Merry Christmas. Quando nos viram no handshake, os jerries do outro lado começaram a gritar como loucos, pareciam os de Cambridge a festejarem a vitória sobre Oxford na regata, muitos saltaram para a terra de ninguém e vieram na nossa direcção, os nossos indianos imitaram-nos e foram ter com eles, não dava para acreditar. Aperta-ram as mãos uns dos outros, ofereceram-se prendas, nós dávamos-lhes cigarros, corned-beef, biscoitos, chocolates, rum, chá e marmeladas Tickler e eles presen-teavam-nos com schnapps, sauerkraut, cognac, vinho e doces. Mas tinham sobretudo muitos charutos, os quais, pelos vistos, eram profusamente distribuídos lá na retaguarda como prendas do Kaiser. Eram tantos os charutos que o capitão Collins comentou termos caído no meio de um batalhão de milionários. “ Gleen deu uma gargalhada e suspirou. “Ah, foi uma festa incrível, vocês haviam de ver, aquilo foi mesmo um Natal a sério. Vendo bem, e de uma certa maneira, talvez tenha sido o melhor Natal da minha vida, o ambiente era absolutamente fantástico. “
“Conversaram? “, perguntou Afonso.
“Claro. Havia muitos handshakes e sorrisos, mas conseguimos falar um pouco.
Fiquei com a impressão de que eles achavam que estavam a ganhar a guerra e admiravam-se por nós ainda combatermos. Houve um que até disse que havia tropas alemãs em Londres, o que provocou uma risada geral entre os oficiais britânicos. Acho que ficaram desconcertados com a nossa reacção. “ Gleen enterrou o cigarro na neve, a ponta incandescente a mergulhar no gelo fofo e a apagar-se com um fssssh. “Depois, um oficial jerry propôs que enterrássemos os corpos que jaziam abandonados na terra de ninguém, no que concordámos. Todos os jerries que encontrámos do nosso lado foram-lhes entregues e todos os indianos do lado deles foram-nos entregues. Um pároco jerry rezou ali uma missa campal. Estou a vê-lo no pai-nosso, as mãos juntas numa prece, os joelhos na neve, a cabeça tombada, a dizer vater unser, der Du bist im Himmel, Geheiligt werde Dein Name.
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A seguir tirámos fotografias uns dos outros, voltámos a cumprimentar-nos e despedimo-nos. Ficou combinado que haveria uma nova trégua no ano novo para que, uma vez reveladas as fotografias, déssemos cópias uns aos outros. Voltámos para as trincheiras e o resto do dia permaneceu calmo. Às vezes gritávamos coisas de um lado para o outro, uns a oferecerem charutos, outros a prometerem souvenirs, e à noite voltaram as cantorias. Eles tinham o mesmo repertório da manhã. Nós, os oficiais britânicos, para além do Tipperary, oferecemos-lhes uma valente interpretação do My Little Grey Home in the lXest, do Home Sweet Home e, claro, do God Save the King, tudo com muitos aplausos e aclamações efusivas à mistura. “ Suspiro. “Foi realmente um dia extraordinário. “
“No dia seguinte recomeçaram os tiros”, disse Afonso. “Not really”, retorquiu Gleen, abanando a cabeça. “As coisas permaneceram calmas a 26, ninguém queria dar o primeiro tiro. A artilharia abriu fogo da retaguarda, mas a infantaria permanecia quieta. Por vezes, quando um alto oficial aparecia nas trincheiras, dávamos uns tiros para o ar, para disfarçar.
Eles também davam uns tiros e, uma ou duas horas depois, desculpavam-se, alegando que um general qualquer tinha passado por ali. No ano novo permaneceu tudo na mesma e alguns homens encontraram-se junto ao arame farpado da terra de ninguém para oferecerem as fotografias de Natal. As coisas continuaram assim durante meses e só a nossa grande ofensiva de Março de 1915, lançada justamente aqui em Neuve Chapelle e Ferme du Bois, é que pôs um fim a esse estado de coisas. “
“E toda essa confraternização de Natal aconteceu só aqui neste sector? “, quis saber o capitão português.
“Não, foi generalizada”, retorquiu Gleen. “Acho que a guerra parou em dois terços da linha da frente britânica, que na altura se situava entre St. Eloi e La Bassée. Diz-se que até os franceses e os belgas, que odeiam os jerries por eles terem invadido as suas terras, confraternizaram com o inimigo. Por toda a parte foi tudo muito parecido. As cantorias, as luzes das pequenas árvores de Natal, os apertos de mão, as fotografias, as trocas de presentes, a relutância em recomeçar a guerra... “