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“Ouvi dizer que até jogaram football”, indicou o tenente Cook com um sorriso.

“Também ouvi falar nisso, sim, mas não vi nada e nunca conheci ninguém que tivesse testemunhado tal coisa em primeira mão. Mas falou-se muito nisso, dizia-se que, em certos sectores, os nossos homens jogaram football com os Fritz. Uns garantem que andaram todos aos pontapés a uma lata de corned-beef, outros falam em bolas improvisadas de farrapos. Foi até publicada num jornal de Londres a notícia de que um jogo entre os nossos tommies e os jerries terminou com eles a ganharem 3-2. Mas isso são boatos. Eu, pessoalmente, não vi nada. “

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“Os outros Natais foram todos também assim? “, quis saber Afonso.

“Não com esta dimensão, embora se tenha efectivamente registado confraternização. O Alto Comando deu instruções rigorosas para não haver comporta-mento amistoso com o inimigo, mas essas ordens não foram cumpridas em toda a parte. Em 1915, os soldados confraternizaram ali em Laventie, por exemplo.“ Apontou para a retaguarda da esquerda, atrás de Fauquissart. “E no ano passado, embora não tivesse havido conversa e encontros entre tommies e jerries, também não houve combates, apesar de ter ocorrido alguma actividade de artilharia. De qualquer modo, e no que diz respeito à infantaria, quase se pode dizer que não foram disparados tiros nos três Natais desta guerra. “ Ficaram os três oficiais sentados no topo do parapeito, de olhar perdido na neblina da terra de ninguém, perscrutando as linhas inimigas, adivinhando intenções, procurando sinais. Um bando de aves irrompeu com fragor sobre as trincheiras. Era uma visão rara, nunca os pássaros vinham visitar aquele vulcão de fogo e morte. Afonso suspirou, quase feliz, admirando as pequenas aves a pousarem nas árvores calcinadas e a quebrarem o silêncio com as suas alegres canções de enamoramento.

“Estou cheio de curiosidade para saber o que vai acontecer esta noite”, comentou Afonso.

“Você está querendo conversar com os boches”, riu-se Cook, em tom de provocação.

“Bem... e por que não?“, admitiu o português. “Deve ser interessante conhecer assim o inimigo, falar com ele. Os únicos boches que eu vi ao natural ou eram prisioneiros ou eram vultos distantes que desapareciam num ápice “

“Mas olhe que o Alto Comando não vai querer isso.” “O Alto Comando que vá para o raio que o parta. O que é que eles fazem se eu, na noite de Natal, conversar com o inimigo? Mandam-me para as trincheiras?

“Se você fosse britânico, levava com o tribunal de guerra em cima. “

“O quê? Não me digas que prenderam toda a malta que confraternizou em 1914!”

“Não, claro que não. Mas houve oficiais que sofreram sanções discipli-nares em 1915, e os regulamentos tornaram-se, desde então, mais duros no que diz respeito à confraternização com o inimigo. “

“Pois entre nós não há essa preocupação”, sorriu Afonso. “Vantagens de ser português. “

“O que tenciona você fazer? “

“Eu? Nada. Mas, quando vierem as cantorias, a gente não se cala, vai ser um concerto do camano. Se os boches se puserem a cantar o O Tannenbaum, a malta 291

responde com o Malhão, Malhão, vais ver. E, se eles mandarem para cá o ZXacht am Rhein, o pessoal do 8 atira-lhes com um vira do Minho. E, se os tipos ainda vierem com o Stille Nacht, vamo-nos a eles com um fadinho da Severa. “ Esfregou as mãos, antecipando com impaciência o espectáculo que se montava na sua imaginação. “Vai ser uma beleza. “ O tenente Cook explicou ao capitão Gleen as intenções de Afonso. Gleen abanou a cabeça.

“Você não pode fazer isso. “

“Porquê? “

“Porque os jerries não podem ver o estado em que se encontram as tropas portuguesas.”

“Porquê?”

“Se eles vos virem assim como vocês estão, todos rotos e esfarrapados, cansados e ansiosos por saírem daqui, magros, sujos e por barbear, eu é que não quero aqui ficar. Eles saltam-vos em cima com toda a força que têm. “

“ Quebram a trégua?”

“Não. Saltam-vos em cima depois da trégua. Depois. “ “Ah”, exclamou Afonso, ficando a matutar nesta observação. “É imperativo que não haja contacto entre portugueses e jerries, o Alto Comando faz muita questão nisso. Se houver confraternização, o inimigo percebe num instante que vocês são uma potencial vulnerabilidade no nosso sistema defensivo. “

“ Combatemos mal?”

“Não é bem isso”, atenuou Gleen. “Digamos que dá a impressão de que os vossos homens começam a estar há demasiado tempo nas trincheiras. Quando é que chegaram cá?

“ Onde? A França?”

“Às trincheiras!”

“Bem, a 1.a Divisão ocupou as suas posições na frente de combate no final de Maio e a nossa brigada, que pertence à 2.a Divisão, entrou nas trincheiras exactamente no dia 23

de Setembro.“

“Hum, Maio e Setembro...“, repetiu Gleen, fazendo as contas de cabeça e enumerando os dedos como se fossem meses.

“Portanto, se bem compreendo, a 1.a Divisão está a combater há sete meses consecutivos e a 2.a Divisão há três. Olhe, se fossem forças britânicas, já tinha chegado a hora de regressarem à retaguarda para um prolongado descanso, em especial a 1.a Divisão.

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Nenhum soldado aguenta estar tantos meses seguidos enfiado em poças de lama com bombas a explodirem em redor e balas a voarem constantemente sobre a cabeça. Ora veja os jerries ali em frente, por exemplo. Há pouco tempo estavam naquelas trincheiras, do outro lado, os homens da 50.a Divisão. Pois os últimos prisioneiros que capturámos revelaram-nos que esses já foram descansar. Estão agora ali os tipos da 44. a Divisão, também pertencentes ao VI Exército de von Quast. Ou seja, de um lado estão jerries frescos e do outro encontram-se portugueses fatigados. Fungou. “Se quer que lhe diga, isto cheira mal.

“O que quer que nós façamos?”

“Arranjem reforços, for Christ's sac”, retorquiu. Fungou novamente e lançou um escarro para a neve. “Vocês precisam de tropas frescas e ainda não receberam nenhumas.

O cansaço acumula-se, o moral ressente-se e isso começa a notar-se na forma como os homens se apresentam.”

Sentiram movimento na trincheira, mesmo atrás, e voltaram as cabeças para verem o que era. Passava um lãzudo enregelado, envolvido num pelico roçado e com as mangas rasgadas da farda a sobrarem-lhe, eram maiores do que os braços, mas o que nele mais se destacava eram as botas abertas na frente, a sola a descolar-se do cabedal, parecia uma boca escancarada com a língua de fora, a língua eram os pés, claro, as meias rotas e apodrecidas encontravam-se cobertas de trapos imundos na extremidade, de modo a protegerem os dedos. O cabedal fora confeccionado sem gordura, o que era normal em Portugal e adequado às amenas condições climatéricas do país, mas ali era diferente, o clima da Flandres revelava-se bem mais húmido e, naquelas condições, o calçado português tornava-se largamente permeável à água e à lama, o que facilitava o apodrecimento dos fios de ligação da sola à gáspia e provocava aquele lamentável e ridículo espectáculo.

O capitão Gleen apontou com o polegar para a miserável praça que se arrastava com dificuldade pelas tábuas da trincheira e que tão oportunamente os brindara com a sua inspiradora aparição.

“You see? É justamente por causa disto que não podemos deixar que o Fritz vos veja.“