“Vocês já viram esta merda? “, perguntou Baltazar por entre o rugido da artilharia portuguesa. “Que falta de categoria, bombardear desta maneira o inimigo na consoada. O
que é que os boches vão pensar? “
“É”, concordou Matias Grande. “Não é nada católico. Vão julgar que somos uns selvagens. “
“Isto é mesmo um golpe baixo. “
“Bombardear os boches na véspera de Natal vai dar azar”, vaticinou Vicente, impressionado com o canhoneio.
“ Cala-te, Manápulas. “
“Esperem p'ra ver”, repetiu Vicente, erguendo o indicador como quem faz um aviso.
“Isto vai dar azar!”
Ao fim de dez minutos, o bombardeamento diminuiu de intensidade. De quatro tiros por minuto, a artilharia portuguesa passou a dois tiros por minuto. A trovoada permaneceu violenta, mas notava-se que se tornara agora um tudo menos cerrada. Quando se esgotou meia hora, o batimento foi abruptamente suspenso.
O silêncio voltou às trincheiras e os lãzudos permaneceram encostados às paredes de lama, os sons das baterias ainda a ressoarem nos tímpanos, todos a aguardarem nervosamente a resposta dos alemães.
“Eles devem estar todos nicados”, sussurrou Baltazar, receando que falar alto fosse a gota de água que fizesse transbordar o copo da paciência do inimigo. “Isto vai escacholar, vão ver. “
Continuaram a aguardar, mas nada, os alemães não se mexeram, nem um tiro. Nada.
Aguardaram e esperaram, mas apenas o silêncio respondeu.
“Manducaram e calaram”, comentou por fim Vicente, no íntimo não acreditando que isso fosse mesmo verdade, era talvez um desejo, uma súplica, uma esperança.
Ao cabo de quinze minutos, contudo, começaram finalmente a acreditar que não haveria retaliação imediata e descontraíram-se um pouco, fumando cigarros em catadupa.
Inesperadamente, Baltazar lançou um grito de alarme.
“Atenção, gás! “
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Os companheiros deram um pulo e olharam com ansiedade em redor, assustados, procurando em vão a receada nuvem colorida enquanto as mãos buscavam freneticamente as máscaras.
“Gás Onde?”
Baltazar fez pressão com a barriga e, com aparatoso ruído, libertou a flatulência retida nos intestinos.
“Gás feijão”, exclamou o Velho antes de se perder em novas gargalhadas. “Categoria, categoria. “
Os homens entreolharam-se, agastados, e voltaram a sentar-se. Matias suspirou e ficou a abanar a cabeça, um sorriso condescendente desenhado nos lábios.
“Ribaldeiro.“
Instantes depois, o sargento Rosa apareceu no local e sentou-se de cócoras junto aos homens. Vinha ofegante, o receio da retaliação alemã forçava-o a correr curvado, o que era cansativo. Aproveitou a pausa na ronda para recuperar o fôlego.
“Então?“, arfou. “Novidades? “
“Os boches estão quietos, meu sargento”, informou Matias. “Já reparei. “
“Por que razão há tão poucos homens nossos aqui nas trinchas, meu sargento? “
“A brigada deu ordem para espalhar a malta pelos campos, lá atrás, na linha das aldeias, por causa da retaliação dos boches. “
“Então e nós?“
“Alguém tinha de ficar nas trinchas, não é? Coube-vos a vocês e a mais uns quantos.“
“É sempr'a mesma porra”, resmungou Vicente Manápulas. “Os maiorais decidem distribuir castanhas pelo Natal e a malt'é que se nica c'o troco. Puta qu'os pariu! “
“Não vale a pena mandares vir porque os boches, pelos vistos, não escacholaram”, admoestou-o o sargento Rosa.
“Por enquanto, meu sargento, por enquanto”, insistiu Vicente. “Espere pela volta do correio. “
“Mas que ave mais agoirenta!“, comentou Matias reprovadoramente, o cabo sabia que os presságios do Manápulas tinham um efeito negativo no pelotão.
“Quando é que servem o bacalhau? “, perguntou Baltazar, igualmente preocupado com o efeito dos maus agoiros de Vicente e decidido a aligeirar a conversa e levá-la para outros rumos. Como tinha sempre a cabeça no rancho, ainda para mais com a ementa especial de Natal a aguçar-lhe o apetite, achou que este era um magnífico tema para distrair o grupo. “Ouvi dizer que esta noite, para a consoada, era coisa de categoria e eu já estou cá com uma larica... “
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“Não vai haver bacalhau para ninguém”, atalhou o sargento secamente.
“Como? “, admirou-se Matias. “Mas o Matos disse-me... “
“O rancho na cantina foi suspenso. “
“ O quê?”
“Desculpem lá, malta, mas são ordens superiores”, explicou Rosa, embaraçado por ser portador daquelas notícias. “Eles querem toda a gente a postos durante a noite, a borrasca vai continuar. “
“Oh, não! “, protestou Baltazar. “Mas que merda essa. “ Lamento, mas, como eu disse, são ordens. Vão ter de se contentar com o corned-beef. “
“Eu quero qu'o corno-bife vá p'rá puta qu'o pariu! “, rugiu Vicente, furioso e inconformado, aplicando um intempestivo pontapé num saco de areia e mais um chorrilho de palavrões. “Aposto com quem quiser qu'a merda do bacalhau vai parar à mesa dos oficiais! “
Ninguém quis apostar, era evidente para todos que o bacalhau seria destinado aos cachapins da retaguarda.
“Mas que borrasca é essa de que falou, meu sargento? “, perguntou Matias, atento às anteriores palavras de Rosa.
“Vai haver novo bombardeamento às sete da noite. “ “ Outra vez? “
“Outra vez”, confirmou o sargento, erguendo-se para prosseguir a ronda, não queria ficar ali a aguentar com os protestos. Deu um passo para se ir embora, hesitou, olhou para trás e esboçou um tímido sorriso. “Feliz Natal, pessoal” 299
IX
A manhã prolongava-se, agradável e modorrenta, no tranquilo quartel-general do CEP, em St. Venant. Agnès olhou melancolicamente pela janela da mansão, admirando os enormes ulmeiros que se erguiam como torres no jardim, o chilrear amoroso dos pardais a encher de melodia aquele bucólico quadro. Com os olhos pensativamente perdidos na verdura, a francesa achou estranho estar ali, no centro de comando de uma das forças envolvidas naquela guerra terrível, e ver-se rodeada por tal paisagem paradisíaca, como era possível que os homens que mandavam outros para a frente de batalha vivessem num ambiente tão pacífico, tão recatado, tão escondido dos horrores resultantes das ordens que dali emitiam? Agnès suspirou, arquivou numa enorme pasta a carta que tinha na mão e encetou um novo envelope.
Sentiu a porta a abrir-se à esquerda e voltou a cabeça. Era o tenente Trindade que entrava na sala de dactilografia, momentaneamente deserta, ou quase, e ia ter com ela.
“Quer um chá“, perguntou o oficial português.
“Não, obrigada.“
“Nem um café?“
“Não, não quero nada, obrigada. Estou bem. “
O tenente hesitou, olhou em redor, não estava lá mais ninguém, o resto do pessoal tinha ido almoçar e as máquinas de escrever encontravam-se mergu-lhadas no silêncio.
“Tem a certeza de que não quer ir esta noite dançar um fox-trot comigo?”
“Agradeço-lhe de novo o amável convite, mas não pode ser. “ Ia-se divertir. “
“Tenho a certeza, senhor tenente, mas infelizmente não posso. “Oh, não me chame senhor tenente, imploro-lhe. Já lhe pedi tantas vezes para me tratar por Cesário. Vá lá, seja simpática. Cesário. “
“Peço desculpa, tentarei lembrar-me. “
Agnès sentia-se já cansada de todas as atenções com que o tenente Trindade a brindava desde que, havia quase uma semana, começara a trabalhar no quartel-general. Ir para St. Venant tinha sido uma ideia de Afonso, agora que saíra de casa ela precisava de trabalho e o centro de comando do CEP era uma alternativa interessante. Tratava-se de um lugar tranquilo, não era por acaso que os soldados conheciam o quartel-general como Grande Canja. O amante tinha-a apresentado ao seu amigo Trindade Ranhoso logo na 300