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Viveram cinquenta anos juntos, partilharam sabores e dissabores, dias soalheiros e noites

sombrias, e tornava-se dolorosamente evidente que desfrutavam agora dos derradeiros momentos a dois, o caminho iria em breve apartá-los como o horizonte separa o céu da terra. Envolvia-os um amor maduro, não já feito de paixão nem de arrebatamento, mas de afetos carinhosos, de sentimentos vividos, de uma ligação profunda. Ela era a árvore, ele a folha, ela o sol, ele a praia, ela a abelha, ele o pólen; eram a luz e a cor, a terra e o céu, o lago e o nenúfar, o mar e a areia, a gaivota e o ovo. O filho não os conseguia imaginar separados, e, no entanto, o inimaginável preparava-se para acontecer.

Ao senti-los enfim serenar, Tomás aproximou-se da cama, pegou na mão fraca e fria do pai e forçou um sorriso.

"Que grande chatice, hã?"

O velho esboçou um sorriso tênue.

"Pareço um bebê."

"Ah, sim? Um bebê? Porquê?"

O velho fez um gesto lento que abarcou toda a cama onde se encontrava deitado.

"Então não vês? Já não consigo fazer nada."

"Disparate."

"Dão-me de comer. Vestem-me. Até o rabo me limpam."

"É só agora. Depois, quando ficar melhor, já trata de si outra vez, vai ver."

O pai fez um gesto impotente.

"Quando ficar melhor? Eu não vou ficar melhor..."

"Disparate. Claro que vai."

"Pareço um bebê", repetiu, sempre com uma voz muito débil, quase apenas soprada. "Até já durmo como um bebê."

"É para recuperar forças."

"Durmo que me farto. É como se tivesse retornado à infância. É a infância ao contrário."

"Veja lá se é a hora de tomar o biberão", brincou Tomás.

O velho matemático sorriu levemente. Mas logo os olhos assumiram uma expressão interrogativa.

"Como será a morte?"

"Ó Manel, não fales nisso, credo", cortou de imediato a mulher, com ar reprovador. "Olha para o que lhe havia de dar!"

"A sério", insistiu o moribundo. "Interrogo-me sobre o que me espera."

"Cala-te lá com essa conversa. Quem te ouvir até parece que... que..."

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"Ó Gracinha, deixa-me falar sobre isto, está bem? É importante para mim, não percebes?"

A mulher fez um ar resignado e Manuel Noronha encarou o filho.

"Nos últimos meses tive sempre dificuldade em adormecer", murmurou o velho professor, a voz reduzida quase a um fio. "Punha-me a dar voltas na cama, a pensar no que será a morte, no que será a não-existência. Uma coisa horrível, hem? E todos vamos enfrentar isso, não é?" Fez uma pausa, os olhos perdidos num ponto indefinido do teto. "Mais cedo ou mais tarde é esse o nosso destino."

"Lá isso é", observou Tomás.

“É por isso que eu penso: como será a morte?" Respirou fundo. "Será igual ao que era a não-existência antes do nascimento? Será que a vida começa com um Big Bang e acaba com um Big Crunch?" Torceu os lábios. "Nascemos, crescemos, atingimos o apogeu, definhamos e morremos." Fitou o filho com intensidade. "Será que é só isso?

Será que a vida se resume a isso?"

"O pai pensa muito na morte?"

O velho curvou a boca.

"Penso um pouco, sim. Quem, estando onde eu estou, não pensa? Mas, talvez, mais do que na morte, penso na vida."

"Em que sentido?"

"Umas vezes penso que a vida não tem valor, é uma coisa insignificante. Eu vou morrer e a humanidade não sentirá a minha falta. A humanidade vai morrer e o universo não sentirá a sua falta. O universo vai morrer e a eternidade não sentirá a sua falta. Não passamos de uma irrelevância, simples poeira que se perde no tempo."

Inclinou a cabeça. "Mas, outras vezes, penso que, afinal, todos nascemos com uma missão, todos desempenhamos um papel, todos fazemos parte de um grande esquema. Pode ser um papel minúsculo, pode parecer uma missão irrisória, talvez até a consideremos uma vida perdida, mas, feitas as contas, quem sabe se coisa tão minúscula se poderá revelar uma migalha crucial para a concepção do grande bolo cósmico." Arfou, cansado. "Somos minúsculas borboletas cujo frágil bater de asas tem talvez o estranho poder de gerar longínquas tempestades no universo."

Tomás ponderou estas palavras. Estendeu o braço e apertou a mão fria do pai.

"O pai acha que alguma vez poderemos desvendar o mistério de tudo?"

"De tudo, o quê?"

"Da vida, da existência, do universo, de Deus. De tudo."

Manuel suspirou, a fadiga tomando conta do rosto, os olhos a começarem a pesar-lhe.

"O Augusto tinha uma resposta para isso."

"Qual Augusto? O professor Siza?"

"Sim."

"E qual era a resposta dele?"

"Era um aforismo de Lao Tzu." Fez uma pausa, para recuperar o fôlego. "Foi um amigo tibetano que lhe ensinou, há muito tempo." Fez um esforço para se concentrar.

"Deixa cá ver se..."

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A enfermeira Berta entrou no quarto.

"Pronto, já chega", disse ela, agitando os braços. "Parem lá com a conversa. Agora deixem o senhor professor descansar."

"Um momento", pediu Tomás. "Que aforismo era esse?"

O pai pigarreou, estreitou os olhos e lembrou-se.

"No fim do silêncio está a resposta", recitou. "No fim dos nossos dias está a morte.

No fim da nossa vida, um novo início."

O telemóvel tocou quando saíam do hospital, a mãe enxugando as lágrimas que teimavam em marejar-lhe os olhos.

"Hi, Tomás", saudou a voz do outro lado.

Era Greg.

"Então?", disse Tomás, evitando cumprimentar o americano. "Já espancaram a Ariana? Ela disse-vos o que vocês queriam saber?"

"Come on, Tomás. Não seja assim."

"Foi à bofetada ou foi com choques elétricos?"

"Tomás, não foi nada disso. Nós não somos uns selvagens."

"Ah, não? Então o que andaram vocês a fazer nas cadeias iraquianas?"

"Uh... isso é diferente."

"E em Guantánamo?"

"Isso é diferente."

"Diferente em quê?" perguntou, um ressentimento gelado na voz. "Uns são iraquianos, outros são afegãos, ela é iraniana. Não é tudo igual para vocês?"

"Come on, pai. Não seja assim..."

"Eu não sou assim. Vocês é que são."

"Você está a ser injusto."

"Ah, estou? Então o que está a Ariana a fazer na vossa embaixada?"

"Ouça, nós tivemos de a interrogar", justificou-se Greg. "Não vê como isso é importante para nós? Ela está ligada ao projeto nuclear iraniano e, quer queiramos quer não, tem conhecimentos muito valiosos. Não podíamos deixar passar esta oportunidade. Afinal de contas, está em causa a segurança nacional, que diabo! Como é evidente, tínhamos de a interrogar."

"O interrogatório deixou-lhe marcas físicas?"

"O interrogatório foi civilizado, fique descansado."

"Civilizado? Depende do seu padrão..."

"Não acredita? Pois, olhe, posso-lhe dizer que não arrancamos nada que não soubéssemos."

"Bem feito."

"O pessoal de Langley está muito irritado com ela."

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"Ainda bem, fico contente em saber isso."

Greg fez com a língua um estalido agastado.

"Ouça, Tomás, o caso não é para brincadeiras, ouviu? Recebi agora ordens de Langley em relação a ela e é por isso que lhe estou a telefonar."

"Ordens? Que ordens?"

"Eles mandaram repatriá-la."

"O quê?"

"Langley disse que, uma vez que ela não coopera, o melhor é mandá-la de volta para os iranianos."

"Vocês estão loucos?"

"Hmm?"

"Vocês não podem fazer isso, ouviu?"

"Ah, não? Porquê?"

"Porque... porque eles matam-na."

"Os iranianos matam-na?"

"Claro. Não vê que ela me ajudou?"